O TEMPO - PARTE II |
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Tenho Medo de Que
Cacem a Bala o Belo Negão
Publicado em: 02/09/2008
Eu tinha medo, mas era dos brancos e sua violência
A história norte-americana tem espasmos progressistas e
reacionários. Na época de Eisenhower, eu morei nos USA e estudei
numa "high school" da Flórida, no coração da "América profunda", em
Saint Augustine, a cidade mais antiga do país, fundada pelo maluco
Ponce de Leon, que chegou em busca da Fonte da Juventude. Era a
época da "geração silenciosa" do pós-guerra. Eisenhower só dizia
"platitudes", palavra que aprendi com a professora de inglês, uma
velhinha democrata que odiava a burrice nacional. Depois, veio o
Kennedy, moderno, com mulher chique, que governou até 63, quando uma
bala transformou sua bonita cabeça numa massa sangrenta. Ficou
Lyndon Johnson, um medíocre vice democrata, pré-Nixon. Depois, o
irmão Bob Kennedy, que certamente seria eleito, foi assassinado na
frente das TVs do mundo todo em 68. Em seguida, tivemos o espasmo
reacionário de Nixon, que cai em 74, sucedido pelo frágil Jimmy
Carter, que preparou a chegada dos republicanos Reagan e Papai Bush,
até a "era dourada" do Clinton, que acabou desmoralizada pelos
lábios da Mônica Lewinsky, no mais trágico "boquete" da história
ocidental.
Agora, talvez acabe a fase do Bush, o débil mental que reinou por
oito anos e que, se Deus quiser, não será sucedido pelo hipócrita
McCain. No entanto, com a gloriosa nomeação de Obama pelos
democratas, fico olhando aquele homem raro, profundo, que aponta os
melhores caminhos para a América, e me preocupo: "Será que os
norte-americanos vão deixar um negro intelectual presidir o país?"
Digo isso porque vi o racismo norte-americano de perto. Saint
Augustine era uma cidade igual àquela do "Truman Show". Os ritos
sociais, as pessoas, os gestos cotidianos, os sorrisos e lágrimas,
tudo parecia programado por uma máquina social obsessiva. Vida e
morte eram padronizadas: abraços gritados, torcidas histéricas no
baseball, alegrias obrigatórias, intensa religiosidade, tudo
funcionava num carrossel de certezas absolutas. Só uma coisa estava
fora da ordem: os negros. Era outra América dentro da cidade. No
ônibus amarelo do colégio, via meus colegas louros, ruivos e brutos
berrando contra os negros que passavam: "Hey, "nigger", por que teu
nariz é tão chato? Hey, "nigger", por que teu cabelo é pixaim?" Os
negros ouviam de cabeça baixa, o rosto torcido de humilhação, num
ódio sufocado.
Amontoavam-se no fundo dos ônibus, em pé, mesmo com os carros
vazios, e moravam num bairro sujo de madeira e terra. Eu me
espantava com aquela ausência total de compaixão, eu que vinha de
babás negras me beijando. Os pobres segregados eram tristes,
trêmulos e esfarrapados, obesos e deprimidos, com frágeis mulheres
engelhadas e crianças assustadiças. E eu tinha medo, mas era dos
brancos. A violência dos alunos me assustava. Vi brigas de ferozes
galalaus se arrebentando até o sangue no focinho e o desmaio, onde
nem os diretores do colégio podiam interferir. Eu era um "nerd"
comprido e meio bobo nos meus 15 anos e me chocava com as botas de
cowboy marchetadas de estrelas de prata, com as facas de onde a
lâmina pulava, os casacos de couro negro que já vestiam a "juventude
transviada" - uma rebeldia reacionária e "republicana". O ídolo da
época era Elvis Presley rebolando na TV. Pairava um clima de
intolerância entre os próprios brancos; eram os fortes contra os
fracos, as meninas bonitas contra as feias, as sérias contra as
"galinhas" que eram comidas nos "drive-ins", dentro dos carros
envenenados, os "hot rods", e depois cuspidas para a humilhação
coletiva. As rivalidades eram vingativas e duras.
Eu, turista tropical, tímido e fraco, provocava-lhes um respeito
cauteloso, por ser estrangeiro e os machões me poupavam porque eu
lhes dava "cola" em "spelling", soletrando palavras de raiz latina,
enigmas para eles. Mas existia no ar um perigo desconhecido. Não
havia espaço para dúvidas naquela cidade, mas dava para sentir que
aquela solidez de certezas, se rompida, provocaria um grave
desastre. Eu navegava naquela cultura obsessiva e, bem ou mal,
conseguira namorar Melinda Mills, pálida filha de um ex-marine que
estivera no Rio e me mostrou um cartão postal do Mangue com suas
palmeiras, onde ele certamente conhecera a zona e as polacas. Até
que, um dia, chegou a noticia terrível: tinha subido aos céus o
satélite russo, o "Sputnik", girando como uma bola de basquete em
órbita da Terra. Foi indescritível o pânico na cidade. Desde 49, com
a explosão da bomba H pelos soviéticos, destronando a liderança dos
destruidores de Hiroshima, os norte-americanos esperavam outra
catástrofe, que viria como um filme de terror tipo "A Invasão dos
Feijões Gigantes".
Em minutos, a cidade parecia um campo de refugiados, de perdedores
humilhados pelos comunistas no espaço. No colégio, começaram "fire
drills" incessantes, alarmes evacuando os alunos para porões e
abrigos atômicos. O então senador Lyndon Johnson berrou: "Brevemente
estarão jogando bombas atômicas sobre nós, como pedras caindo do
céu"... No alto, o satélite Sputnik humilhava os norte-americanos,
com seus "bip bips", soando como gargalhadas de extra-terrestres. A
partir desse dia, os colegas passaram a me olhar de lado.
Transviados e porradeiros me investigavam com perguntas: "Que você
acha? Teu país gosta dos russos"? Eu tremia e escondia minha vaga
admiração pelo socialismo. Eles me olhavam desconfiados: brasileiro,
latino, sabe-se lá? Depois disso, não me pediam mais cola. O pai de
Melinda, putanheiro do Mangue, mal me cumprimentou de sua poltrona
esfiapada. Melinda ficou mais pálida e nosso namoro definhou. Por
isso, hoje vejo o Obama, esguio, mulato, de elite, com a mulher
gatona como uma cantora funk, e penso: "Na América existe um
‘racismo’ sutil, inconsciente, mas vasto. Está além da cor da pele.
É a desconfiança do novo, do diferente, diante dos verdadeiros
liberais reformistas como Obama". E tremo: "Será"? Tenho medo das
balas republicanas. Elas não perdoam.
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