O TEMPO - PARTE II |
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Um Ensaio Poético
Sobre a Música Popular
Publicado em: 26/08/2008
Eu sou um pobre homem da rua Guimarães, hoje Almirante Ari
Parreiras, ali no Rocha. E sempre me lembrava do ritmo dos subúrbios
do Rio, dos tempos mortos, dos terrenos baldios de capim, das valas,
das casinhas geminadas, das mangueiras, de um passado que parecia se
mover em câmera lenta, em que os dias eram divididos em manhãs,
plena luz, entardecer e noites mais escuras e mais estreladas.
Esta semana reencontrei meu passado infantil, pelas mãos de minha
filha Carolina. Isso. Fui ver, com temor e dúvida, o documentário "O
Mistério do Samba", produzido pela Conspiração Filmes, patrocinado
pela poética empresa Natura, sob a inspiração de Marisa Monte e
dirigido por Carolina Jabor, minha filha (uh hu hu hu!), e Lula
Buarque de Hollanda. E caí para trás.
Não porque ela seja minha filha, nem porque conheço o talento de
Lula desde pequeno, nem porque vi a Marisa estrear ainda menina,
não; o filme é excepcional. Digo isso sem temor de nepotismo
explícito. É um grande barato, um dos melhores documentos poéticos
que tenho visto no país.
Filmado durante dez anos, produtores e diretores acompanharam a vida
e a arte dos sambistas da Velha Guarda da Portela e mostram, com
carinho e respeito, o mistério do nascimento do samba. Registraram o
que sobrou de 1926, da antiga "Vai como Pode" - as personagens que
participaram do parto do samba, como se filmassem a nascente, o olho
d’água do grande "rio que passou em nossa vida e levou nosso
coração". Sim, porque aqueles homens e mulheres ali, muitos com mais
de 80 anos, estavam no início da misteriosa e riquíssima música que
a pobreza fez, com seus operários, vendedores de rua, carpinteiros,
contínuos e lavadores de carro.
Hoje, o morro, os subúrbios nos preocupam como berços de violência,
tráfico, balas perdidas... Mas este filme (as platéias aplaudem de
pé, dançando ao final) recupera a delicadeza minimalista das letras
e melodias de 50, 60 anos atrás, a riqueza da pobreza, a música
feita com a simplicidade do pão, da comida, dos amores baldios, da
cerveja, do apito do trem passando. Os sambas da velha guarda
salvaram suas vidas. Que seria deles se não cantassem?
Não é um filme sobre o passado; é sobre um presente que nascia. Não
é um filme de lamento sobre alguma coisa acabada, mas sobre a
vitalidade que tem de continuar, que resiste nos subúrbios apesar da
violência da indústria cultural de massas e da boçalidade dos
pagodes de jabás e de boquinhas de garrafa ou axés de multidões
burras. No filme, estão todos os grandes artistas: o espírito de
Manacéa, Jair do Cavaquinho, Argemiro Patrocínio, Casquinha, Monarco,
e o filho mais moço Paulinho da Viola, protegidos por Tia Surica e
Tia Doca. Nele está Zeca Pagodinho, preservando em corpo e alma o
espírito desse tempo, hoje. A Portela aparece nas pequenas coisas:
sapatos brancos e pretos, as mãos gastas, os rostos comidos pelo
tempo, mas vivos de alegria, os pés descalços, os retratos na
parede, a comida, as cervejas, os cavaquinhos e pandeiros.
Há uma cena em que Zeca conta uma das farras na casa de Argemiro
Patrocínio. É incrível como sua pronúncia arrastada e esperta, seus
gestos matreiros, as pausas, as elipses de sua fala narram o
vai-e-vem da malandragem, do cafajestismo poético, um delicado e
amoroso machismo, a fala no ritmo de letra de samba. O filme
preserva o modo de vida suburbano do Rio, seus homens e mulheres
criando arte, com a sabedoria calma que só a desesperança traz.
Como diz o Zuenir no jornal: "um emocionante documento sobre o
enigma que envolve a criação artística, como pessoas sem condições
materiais são capazes de produzir tantas obras geniais..." Este
filme nos evoca na hora o "Buena Vista Social Club". Mas acho que o
filme de Wim Wenders é maravilhoso na música dos grandes esquecidos
que havia em Cuba, como Compay Segundo, Rubem Gonzalez e Ibrahim
Ferrer, principalmente pela segura direção musical de Ry Cooder.
Mas a cinematografia de Wim, eu a considero mediana e inferior à
desse filme, no qual a montagem por associação livre e analogia
forma um conjunto com significação poética, alem do registro
cultural. O "Mistério do Samba" não lamenta, não evoca, não chora
por um passado, e, principalmente, não denuncia.
Na cabeça da gente, documentário é para denunciar tragédias ou
dramas vivos. Até pode, em documentários essenciais, como "Notícias
de Uma Guerra Particular" de João Moreira Salles, mas, num país como
o nosso, surge um novo tipo de documentário tendendo para a ficção,
documentários que, em vez de denunciar, querem salvar realidades e
fatos, como "Santiago" de João Moreira Salles, trabalhos de Eduardo
Coutinho e outros.
Aos poucos, as pessoas vão virando personagens, vamos nos
apaixonando por elas, aos poucos o documento ganha uma poética
ficcional.
Também sinto que o mundo da Portela foi ditando o próprio estilo do
filme de Carolina e Lula Buarque. O filme aprendeu com os atores, a
criação sem o oportunismo do sucesso, a criação pelo prazer e
necessidade. O ritmo digno e lento daquelas pessoas, seus quintais,
seus quartos pobres, seus botequins dando para a vida, para os trens
que passam no silêncio das tardes, influenciaram o estilo do
trabalho.
O resultado é um filme que "é". Que não é "sobre" nada; o filme
nasce puro como um samba composto num daqueles botequins, na
silenciosa dança do "miudinho", que tia Eunice ensina às meninas,
soprando um beijo entre as mãos, como uma ave.
Ao terminar a sessão (poucas vezes vi tanto entusiasmo em platéias),
me vieram duas frases à cabeça. Uma de Godard: "Todo grande filme de
ficção tende para o documentário; todo grande documentário tende
para a ficção. Ou seja, todos os caminhos levam a ‘Roma, Cidade
Aberta’".
E a outra frase é de Marisa Monte: "Queria fazer esse filme pela
certeza de que a vida ia ser melhor com esses sambas". Pois
melhorou, Marisa.
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