O TEMPO - PARTE II |
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Chegou a Hora do
Preto no Branco nos EUA
Publicado em: 30/09/2008
O debate entre Obama e McCain foi decepcionante
Em 1960, Nixon apareceu no debate barbado e com olheiras, enquanto
seu adversário Kennedy, lindo e limpo, ganhou. George Bush, pai,
olhou o relógio várias vezes, dando a impressão de que tinha vontade
de fugir da raia. Clinton venceu. Al Gore teve votos roubados na
Flórida pela gangue Bush, sem dúvida, mas parte de sua derrota foram
suspiros e gestos excessivos nos debates e seu medo de defender
Clinton pelo trágico "boquete" de Monica Lewinsky. Por isso, o
debate entre Obama e McCain é um trailer de pequenos indícios que
podem definir a eleição norte-americana para além das idéias dos
candidatos. Na substância, Obama saiu-se melhor. Mas, frases e
opiniões pesam menos que a forma, a aparência, os mínimos sinais nos
gestos, o tom de voz, a pele, os tremores do rosto. Uma frase
superficial dita com vigor pode pesar mais do que uma reflexão
profunda emitida com insegurança. Obama, que é um grande orador,
muito melhor que McCain, revelou-se um debatedor tímido, com medo de
chocar o idiota médio norte-americano, os habitantes do chamado FOT
(flying over territory), que podiam achá-lo "de elite", uma das
acusações que a direita lança sobre ele. Obama pareceu intimidado,
não pelo velho wasp McCain, mas pelo próprio ritual do debate.
A estrutura do comportamento obrigatório do confronto já favorecia
McCain. Em um debate careta, moderado por um careta, num cenário que
parecia uma igreja protestante, com uma platéia apagada, regras de
comportamento que inibem qualquer rasgo de coragem ou de
originalidade irônica prejudicaram Obama. O ritual é obsessivo,
excessivamente controlado por regras e movimentos previstos, o que
constrangeu o candidato "afro-negão" que prega a mudança, a crítica
da cultura, até daquela forma de debate repressivo. Tudo ali
favorecia o clichê do pensamento norte-americano médio, onde o
careta McCain nada de braçada. Fica difícil para Obama dizer o que
realmente pensa. Como pode ele criticar o conservadorismo
"conservadoramente", como ser reformista obedecendo ao ritmo lento
da cultura da certeza e do controle? Obama não pode ser muito
inteligente porque o idiota médio não gosta: "É da elite de
Harvard... quer nos humilhar". Obama não pode propor mudanças
concretas radicais porque, se bobear, vira "crioulo pernóstico", da
esquerda liberal, pantera negra ou muçulmano. Muitos de seus
assessores querem que ele tenha mais agressividade, musculatura;
mas, como atacar McCain se seu inimigo principal é Bush? Como
atacá-lo, se o sagaz McCain também critica Bush , apresentando-se
como republicano "light", com as medalhas de ser um "experiente",
"herói de guerra"? O grande "crash" econômico da América (que apenas
começou) favorece um sujeito como Obama, que propõe o "novo", a
mudança? Ou esta crise pavorosa não será uma indigestão de
novidades, levando o norte-americano médio a desejar o sossego do já
conhecido, com o velho republicano? Enquanto McCain navegava no
óbvio, Obama pisava em ovos.
E vai ter de continuar pisando. A voz de McCain, sotaque do Arizona,
com um timbre country, soava como uma partitura decorada, no ritmo
de ordens-do-dia que os generais despejam nos quartéis, expressando
certezas e determinações guerreiras. Por outro lado, Obama,
intelectual, não conseguia evitar as pausas, as dúvidas de um
pensamento complexo. Isso, longe do púlpito de orador (onde ele é
genial), passava a idéia de um vago gaguejar que podia exprimir
inexperiência e hesitação. Obama, como negro, não pode nem criticar
o racismo endêmico da América. Tem de ser pela "cooperação", o que o
faz perseguido pelos negros radicais e ignorantes como seu pastor
Wright. E, no entanto, ele não disparou nas pesquisas porque é
mulato, sim, ou negro ou queniano de origem, sim. Sim. Há um racismo
endêmico na América, que eu conheço bem, pois morei na Flórida
profunda em plena segregação racial. Continua a existir, inclusive
no debate, um racismo sutilíssimo. O moderador Jim Lehrer - logo no
início - deu um toque no Obama: "Olhe para o McCain, quando
falar..." - quase uma invisível ordem escravista: "Come on, boy,
look at him"... A seu lado estava o maior branco do mundo, um wasp
de cabelos brancos, rosto branco, que manteve um sorriso irônico
permanente no rosto quando Obama falava, como se pensasse: "Esse
neguinho inexperiente não sabe nada..." E não olhou uma só vez para
Obama.
Teria o Jim Lehrer coragem de mandar o herói de guerra olhar de
frente para o queniano? O racismo resiste na alma norte-americana,
mesmo no Norte. Não é a suja arenga dos KKK ou de boçais sulistas. É
uma desconfiança com a diferença, um racismo sem cor, um amor à
obediência só esquecido em guetos de perversão. Por vezes, Obama
parecia desamparado, com um rosto crispado, sem sorrisos, sem
conseguir uma única punhalada boa no McCain, que todos esperavam,
mundo afora. Ao contrário, Obama declinou de sua postura de
reformador do grande erro norte-americano ao concordar várias vezes
com McCain, querendo talvez passar imagem de cooperação democrática,
de modo a negar a tradição raivosa de ex-escravos. O debate do
Mississipi foi decepcionante para o mundo. Foi um debate
estritamente norte-americano. Obama poderia (ou poderá) ser uma
mudança no clima do Ocidente, poderá ser o fim de um período de
boçalidade unipolar. A China, Índia, Rússia, até nós brasileiros
somos agora peças de um xadrez novo. E Obama pode ser o anunciador
deste tempo, embora saibamos que mesmo a vitória de Obama será uma
decepção, pelo tamanho da crise que explodiu. Mas sua eleição traria
esperança para os que vivem fora da obsessiva onipotência
norte-americana, depois de oito anos de uma anomalia política que
mudou o Ocidente. É espantoso o mal que a burrice pôde fazer à
América e ao mundo. E que pode continuar a fazer.
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