O TEMPO - PARTE II |
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Nos Últimos Dias,
Vários Amigos "Saíram Fora"
Publicado em: 09/09/2008
Tem gente aí morrendo que nunca morreu antes" ou "para morrer basta
estar vivo" ou ainda: "só morre gente boa, canalha não morre..."
Não adianta: tudo o que se disser sobre a morte é lugar-comum,
inclusive este. Mas a verdade é que morreram muitos amigos nos
últimos dias. Primeiro, o melhor roteirista do Brasil, Leopoldo
Serran, com quem escrevi meu melhor filme, "Tudo Bem", passados
trinta anos.
Depois, Fernando Torres, grande ator e diretor de inesquecíveis
montagens ( até hoje me lembro do "Beijo no Asfalto", que ele
dirigiu em 62).
Em seguida, foi a vez de Fernando Barbosa Lima, um inventor poético
da TV. Nunca me esqueço do "Jornal de Vanguarda", da velha TV Tupi,
quando o locutor declarou: "morrem cinco crianças pobres por minuto
no Brasil". Aí, Fernando tirou o jornal do ar por um minuto e,
quando voltou, o locutor completou: "Enquanto estávamos fora do ar,
morreram cinco crianças de fome".
Só assim se pode falar da morte: pela ausência. Nós apenas saímos do
ar. Ela é tão banal que inventamos solenes rituais para dar-lhe
consistência.
Inventamos religiões ou filosofias agnósticas para nos consolar -
crenças materialistas: "O universo é a eternidade. Deus é o
universo, a substância. Fazemos parte de Deus. Ele está nas galáxias
e no orgasmo, nos buracos negros e no coração batendo"...
"Grandes merdas" - penso hoje - pois, quando ela chega, acaba a
literatura. A morte só tem "antes", não tem "depois" - no "Ivan
Iliitch", de Tolstoi, quando ela chega, acaba o conto.
A morte não está nem aí para nós; ela tem "vida própria". A gente
vai para um lado, o corpo para o outro. Ela nos ignora, nossos
méritos, nossas obras.
Outro lugarzinho comum: "Só nos resta viver da melhor maneira
possível até o fim. Tem mais é que curtir, gente boa"...
Pois é; há muitos anos, pegou fogo no edifício Joelma em São Paulo,
torrando dezenas. Do prédio em frente, as teleobjetivas fotografaram
todas as agonias. Até hoje, lembro-me da foto em cores de um homem
de terno, pastinha James Bond, agachado numa das janelas do vigésimo
andar, com o fogo às costas.
Seu rosto mostrava dúvida: "O que é melhor para mim? Morrer queimado
ou me jogar"? Ele curtiu até o fim e se jogou.
A coisa que mais me irrita na morte é que o morto fica logo
desatualizado. As notícias vão rolar e eu nada saberei.
Haverá crises mundiais, filmes que estréiam, músicas novas, e eu
ficarei lá embaixo, sem saber das novidades.
Quem foi eleito, o Obama ou aquele direitista escroto? Quem virá
depois do Lula? Quem ganhou a Copa? É insuportável a desinformação
dos falecidos.
Meu avô me disse uma vez: "Acho triste morrer, seu Arnaldinho,
porque nunca mais vou ver a avenida Rio Branco..."
Isso me emocionou, pois ele ia diariamente ao centro da cidade, onde
tomava um refresco de coco na Casa Simpatia, depois passava na
Colombo, comprava goiabada "cascão" e queijo de Minas e voltava para
casa, de terno branco e sapato bicolor.
Por isso, quando me penso morto, eu, o único que não irei ao meu
enterro, de que terei saudades?
Não terei saudades de grandes amores, de megashows da vida de hoje,
excessiva e incessante.
Não. Debaixo da terra, terei saudades de irrelevâncias essenciais,
terei saudades de algumas tardes nubladas de domingo que só o
carioca percebe, tudo parado, com os urubus dormindo na perna do
vento, como dizia o sempre presente Tom, do radinho do porteiro
ouvindo o jogo no Maracanã.
Terei saudades do cafezinho nas beiras dos botequins, de certos tons
de roxo e rosa em Ipanema, antes da noite cair.
Saudades do cafajestismo poético dos cariocas, saudades dos raros
instantes sem medo ou culpa, de alguns momentos de felicidade
profunda, sem motivo, apenas pela gratidão de respirar.
Não terei saudades dos fatos e notícias, nada do mundo febril.
Sentirei falta apenas da quietude, o silêncio entre amigos na paz de
um bar, papos de cinéfilo, risos proletários e camaradagem de
subúrbio, do samba que nos envolve nas rodas pobres com a alegre
sabedoria da desesperança, da Lapa, da avenida Paulista de noite, de
Noel Rosa, pernas cruzadas de mulheres inatingíveis, terrenos
baldios de minha infância, Paris (claro), Erik Satie, João Gilberto,
Henri Matisse, Arthur Rimbaud, João Cabral, o tremor de medo e
desejo na hora do amor.
Saudades da primeira namorada no sofá-cama rasgado do apartamentinho
secreto do Partidão, com o cartaz dos conhecidos girassóis de Van
Gogh e uns livros da Academia Soviética.
Tenho saudades da utopia, das madrugadas políticas, da boêmia da
esquerda, soldados ingênuos de uma guerra invisível.
Tenho saudades da delicadeza, da compaixão, também da alegria
selvagem da vingança nas raras vitórias contra os canalhas, saudades
da literatura, da "frágil lua nova", de Jorge Luis Borges, do prazer
da arte.
De Federico Fellini, William Shakespeare e Tintoretto em Veneza para
sempre, de "Cantando na Chuva" - o maior hino da alegria americana.
Saudades do piano-bar do Hotel Carlyle, de Thelonious Monk, saudades
de Fred Astaire dançando "Begin the Beguine" de Cole Porter com
Eleanor Powell, felizes para sempre dentro do universo estrelado.
Há várias mortes. Há brutas tragédias, fomes e bombas, horrendos
desastres, mas, na morte óbvia, comum, caseira, só temos duas
escolhas: súbita ou lenta.
Você, frágil leitor, qual delas prefere? O rápido apagar do "abajur
lilás" de um ataque cardíaco, ou o lento esvair da vida, sumindo com
morfina?
Se eu pudesse escolher, queria morrer como o velho Zorba, o grego,
em pé, na janela, olhando a paisagem iluminada pelo sol da manhã. E,
como ele, dando um berro de despedida.
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