O TEMPO - PARTE III |
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Há 63 anos,
Hiroshima Criou a Guerra do Século XXI
Publicado em: 12/08/2008
Todas as bombas desejam explodir
Cumpro hoje a tradição de todo ano escrever sobre Hiroshima e
Nagasaki, destruídas há seis dias, em 1945. Ninguém fala nisso. Os
jornais esqueceram. Por isso, todo ano me repito, não para condenar
abstratamente um dos maiores crimes da humanidade. Não. Mas para me
lembrar e aos que fazem o favor de me ler que o impensável pode
acontecer sempre. O horror se aperfeiçoa, se camufla, mas não
acabará nunca.
Agora estamos de novo diante do perigo nuclear. Não da guerra fria,
como foi em 62, a crise que extinguiria o planeta; mas diante de
guerras possíveis, táticas, quentes, lá no deserto, com o Paquistão,
a Índia, Israel e brevemente o Irã. Sem falar na Coréia do Norte e
na inveja letal que o grande progresso da China poderá provocar no
Ocidente americano.
Escrevo isso porque vivemos a era inaugurada por Hiroshima: um tempo
em que a morte, ou melhor, o suicídio da humanidade virou uma
escolha político-militar.
Os computadores do Pentágono oscilam nessa possibilidade
estratégica: valerá ou não a pena continuarmos atômicos? Querem que
sim. Tanto é que estão recauchutando 10 mil bombas "velhas", para
que rejuvenesçam e durem mais. Podem destruir o mundo 40 vezes, o
que desestimula qualquer esperança de Razão, projeto, cultura. Há 63
anos, em Hiroshima, inaugurou-se a "guerra preventiva" de hoje.
Vivemos dois campos de batalha sem chão; de um lado, a máquina
norte-americana comandada pela lógica de um turvo capitalismo que
raspará qualquer obstáculo a seu desejo. Do outro lado, temos os
homens-bomba multiplicados por mil, também graças à America do Bush.
E eles amam a morte e não temem destruição.
Enquanto o holocausto dos judeus na Segunda Guerra fecha o século
XX, dando conta de contradições ainda do século XIX, o espetáculo de
Hiroshima marca o início da guerra do século XXI, com sua resposta
invertida na destruição do World Trade Center em 2001.
Auschwitz e Treblinkas ainda eram "fornos" da Revolução Industrial,
mas Hiroshima inventou a guerra tecnológica, virtual, asséptica. A
extinção em massa dos japoneses no furacão de fogo fez em um minuto
o trabalho de meses e meses do nazismo.
O que mais impressiona em Hiroshima é a eficiência, sem trens de
gado humano, a morte "on delivery", "fast", "clean", anglo-saxônica.
A bomba norte-americana foi uma "vitória da ciência". Hiroshima e
Nagasaki dão inicio à guerra "limpa", do alto, prefigurando Guerra
do Golfo, Afeganistão e Iraque 2.
Os nazistas eram loucos, matavam em nome do ideal psicótico e
"estético" de "reformar" a humanidade para o milênio ariano. As
bombas norte-americanas foram lançadas em nome da "Razão".
Na luta pela democracia, rasparam da face da terra os "japorongas",
seres oblíquos que - como dizia Truman em seu diário: "São animais
cruéis, obstinados, traidores". Seres inferiores de olhinho puxado
podiam ser fritados como "shitakes".
Enquanto os burocratas alemães contavam os dentes de ouro e óculos
que sobraram nos campos, a bomba A agiu como um detergente, um
mata-baratas.
Ainda hoje é fascinante ver as racionalizações que a América militar
inventou para justificar seu crime nuclear. Truman escreveu: "Eu
queria nossos garotos de volta ("our kids") e ordenei o ataque para
acelerar essa volta". Diziam também que Hitler estava perto de
conseguir a bomba, o que é mentira.
A destruição de Hiroshima foi "desnecessária" militarmente. O Japão
estava de joelhos, querendo preservar apenas o imperador Hirohito e
a monarquia. Uma das razões reais era que o Presidente e os falcões
da epoca queriam testar o brinquedo novo. Truman fala dele como um
garoto: "Uau! É o mais fantástico aparelho de destruição jamais
inventado! Uau! No teste, fez uma torre de aço de 60 metros virar um
sorvete quente!..."
Além disso, os norte-americanos queriam vingar Pearl Harbour, pela
surpresa de fogo, exatamente como o ataque japonês três anos antes.
Queriam intimidar a União Soviética, pois começava a Guerra Fria,
além, claro, de exibir para o mundo um show "maravilhoso" de
potência, som e luz, uma superprodução a cores enfeitando a era do
novo Império.
O holocausto sujou o nome da Alemanha, mas Hiroshima soa quase como
um desastre "natural". Na época, a bomba explodiu como um alívio e a
opinião pública celebrou tontamente. Naqueles dias, longe da Ásia e
Europa, só havia os papéis brancos caindo como pombas da paz na
Quinta Avenida, sobre os beijos de amor e vitória. Era o início de
uma era de prosperidade na América, dos musicais de Hollywood, pois
o Eixo do mal estava derretido. Naquele ambiente mundial, não havia
conceitos disponíveis para condenar esse crime hediondo. A época
estava morta para palavras, na vala comum dos detritos humanistas.
A euforia norte-americana avança até 1949, quando a bomba H
soviética acaba com a festa, instalando a paranóia nacional que vai
crescer muito em 1957, quando sobe o "Sputnik" - eu estava lá:
parecia um 11 de setembro.
Incrivelmente, o holocausto ainda tinha o desejo sinistro de
produzir um "sentido" para a matança, um futuro milênio ariano.
Hoje, não há mais objetivos ideológicos ou "humanos" no comando. No
lado Ocidental, quem manda são as Coisas: a lógica do petróleo, do
poder de controle, a paranóia anti-terror manipulada pela política.
Mesmo sem um projeto humano no comando supremo, as bombas desejam
explodir. A loucura norte-americana - encarnada pelo embaixador das
Coisas, o Bush - está mais exposta. O avião que largou a bomba A em
Hiroshima tinha o nome da mãe do piloto na fuselagem - "Enola Gay" -
esse gesto de carinho batizou de fogo 150 mil pessoas. Essa foi a
mãe de todas as bombas, parindo um feto do demônio que exterminou 40
mil crianças em 15 segundos.
Estamos assim: de um lado, a Coisa. Do outro, Alá. A pulsão de morte
e o desejo de mercado se encontraram finalmente. Quem vai controlar?
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