O TEMPO - PARTE IV |
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Há vida no
Planeta Vermelho?
Publicado em: 03/06/2008
A “Fênix” pode mostrar que não estamos sozinhos
A navezinha de quatro rodas empacou na rocha. A milhões de
quilômetros dali, no Centro de Controle Espacial, os cientistas
emitiram um comando novo e o velocípede solitário continuou seu rumo
de besouro sem pai nem mãe. A aventura da nave-robô era o recorde de
audiência nas televisões do mundo inteiro. Mas, as telas do mundo
todo só mostravam pedras, sempre pedras, numa tediosa solidão.
O único ser movente naquele planeta vermelho era o próprio carrinho
trôpego que custara milhões, rolando por ladeiras poeirentas. No
alto, brilhavam as galáxias vazias de vida. Era pouco, muito pouco,
assistir àquela monotonia mineral, aquele deserto deprimente sob o
vasto universo indiferente.
Toda a população do planeta queria ver "outros seres", todos
esperavam o surgimento de animais , de vozes, de corpos, mesmo que
disformes, de algo, de alguém com aqueles tremores famintos da
matéria a que se dá o nome de "vida". "Ir tão longe para ver uma
merda dessa?", diziam alguns.
Os cientistas já temiam um corte de verbas no Programa Espacial. Era
preciso alguma descoberta sensacional, alguma resposta viva naquele
planeta, para manter o nível de audiência. Ciência também é mercado.
"Se houve água, pode ter havido vida", falavam os cientistas,
constrangidos.
Mas era pouco - eles sabiam. Desanimados, os técnicos do Centro de
Controle embicaram a navezinha para uma grande faixa lisa que
apareceu no chão vermelho. Como que tomado de nova esperança, o
veículo ganhou mais velocidade, na grande "estrada" reta para o
horizonte, sob o sol cor-de-urina. Nesse novo terreno, aparentemente
liso, o "besourinho" começou a trepidar , como se navegasse agora
sobre uma estrada de baixos-relevos petrificados. Estranhos desenhos
e saliências se faziam sentir sob as rodas.
O espectrógrafo da nave enviava mensagens incessantes, analisando os
inesperados entalhes no solo, como traços cuneiformes de uma
"escrita" antiqüíssima. E os sinais, os riscos, objetos
desconhecidos começaram a desfilar no olho eletrônico da nave, num
travelling sem fim, como se rolasse sobre o frontispício de um
templo caído onde estava esculpida a epopéia de um planeta extinto.
Que eram aqueles detritos? Seriam os ossos de um passado? Seriam
segredos de vida, as delicadas curvas no chão? Seriam montanhas as
massas que já avultavam no horizonte vermelho, seriam restos de
pirâmides, palácios, silos gigantescos? Seria o quê, essa "ilíada"
gravada ali sob o espectrógrafo, o cromatógrafo, o densitômetro,
entre os braços de gafanhoto da nave, que trabalhavam febrilmente?
No Centro Espacial os técnicos se puseram a dançar e cantar com
entusiasmo.
Iluminados de beleza, os olhos do planeta se cravaram nas imagens
que o veículo mandava para as telas. Houve um súbito salto na
audiência. Ninguém trabalhava nesses dias vermelhos, ligados na
pequena aranha lenta e persistente, tão longe, tão longe... E o
encantamento aumentava. Foram surgindo rasgos no solo como
relâmpagos sem luz, asas ou algo como asas, delicados ossos (mortos
fossilizados?), desenhos de corpos e membros gelados no movimento,
proas à mostra (navios?), metais de cores novas, que o cromatógrafo
custava a transmitir: azul, esmeralda, ouro, prata, espelhos no chão
que refletiam a própria nave.
Os povos se encantavam diante do imenso afresco de descobertas,
enquanto batalhões de antropólogos trans-espaciais retraçavam, em
simulações matemáticas, os detalhes do que teria sido a saga
daqueles seres do planeta vermelho. Surgiam mármores de templos,
estátuas em ruínas, gestos parados no ar, fragmentos de rostos,
bocas gritando, torsos, árvores de pedra vermelha. Os cientistas
tentavam retraçar em seus aparelhos, a flora e a fauna de onde
sobraram aqueles detritos. Tentavam reviver em simulações virtuais,
o fogo, a água que teriam existido, os animais e seus urros, os
seres e seus sentimentos, como um quebra-cabeças montado ao
contrário.
"Ab unge leonem" - ‘a partir da garra, reconstruir o leão", como se
diz em heráldica. Mas ainda era pouco. Estas coisas eram mortas, não
estavam ali, se movendo "live and in color". De novo, o tédio
voltava, as televisões se desligavam diante daquele longínquo
desfilar de hipóteses. Foi então que aconteceu. A pequena aranha
esbarrou numa massa escura que parecia um mecanismo. Seus dedos de
lagosta apalparam as arestas e pequenas reentrâncias daquele
estranho aparelho, diante do tédio brutal dos espectadores.
Nada se movia. O mundo morto não era mais notícia. Até que um dos
dedos da nave roçou um botão pequeno, uma grande luz inundou as
telas e, num grito, o mundo inteiro se eletrizou com deslumbramento.
E viram. Imensas florestas coloridas se retorciam sob as chamas que
douravam as árvores, altíssimas torres desmoronavam como blocos de
açúcar luminoso, tropas de animais a galope fugiam sob chuvas ácidas
multicoloridas, peixes saltavam em mares azuis e naufragavam nas
praias, onde multidões de estranhos seres bípedes corriam como se
dançassem num grande festival.
Os habitantes do planeta exultavam diante de tanta beleza, diante
das lindas nuvens de poeira marchetadas de arcos-íris, diante dos
milhares de seres ajoelhados e cantando em desertos brancos, sob
fogos maravilhosos que continuavam a explodir nos céus. Os
espectadores do planeta tremiam de fascinação vendo os lindos mares
subindo, como numa apoteose, invadindo cidades, cobrindo torres
altíssimas. As imagens passavam cada vez mais rápidas. Até que tudo
parou.
A tela ficou negra. Lentamente, foi se avermelhando e voltaram a
aparecer as mesmas imagens mortas que a navezinha já enviava. E,
naquele longínquo planeta da Constelação do Cisne, as multidões
silenciaram, espantadas. Seus tênues sensores tremeram, membros
gelatinosos se agitaram, olhos cristalinos perceberam horrorizados
que não tinham assistido a festas de vida. Era agonia. E todos
entenderam: tinham visto um passado e agora olhavam o presente
vermelho e morto daquele remoto planeta que os antigos habitantes
chamavam de "Terra".
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