O TEMPO - PARTE III |
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Diante do
horror do mundo, temos de ser felizes
Publicado em: 22/07/2008
É proibido sofrer
O Brasil está se defrontando com o absurdo de sua estrutura
institucional. Esta explosão galáctica da crise entre polícia,
política, Judiciário, empresariado, Estado e capital revela o tumor
do absurdo nacional. Olho em volta e tenho de comentar o
incompreensível, o indestrutível, o inexplicável, o inevitável, o
incurável, o impossível.
É desanimador. Deprimo porque vivemos no Brasil uma dupla mensagem:
tragédia nas notícias e gargalhadas nas revistas de celebridades.
Dentro da paisagem tenebrosa, somos obrigados a ser felizes.
Hoje em dia é proibido sofrer. Temos de "funcionar", temos de rir,
de gozar, de ser belos, magros, chiques, tesudos, em suma, temos de
ter "qualidade total", como os produtos.
Para isso, há o Prozac, o Viagra, os "uppers", os "downers", senão
nos encostam como mercadorias depreciadas.
No entanto, a depressão tem grande importância para a sabedoria; sem
algum desencanto com a vida, sem um ceticismo crítico, ninguém chega
a uma reflexão decente.
O bobo alegre não filosofa, pois, mesmo para louvar a alegria, é
preciso incluir o gosto da tragédia. No pós-guerra, tivemos o
existencialismo, o suicídio da literatura com gênios como Beckett e
Camus ou o teatro do absurdo, o homem entre o sim e o não, entre a
vida e o nada.
A infelicidade de hoje é dissimulada na alegria obrigatória.
"A depressão não é comercial", lamentou um costureiro gay à beira do
suicídio, mas que tinha
de sorrir sempre, para não perder a freguesia.
O bode pós-moderno vem da insatisfação de estar aquém de uma
felicidade prometida pela propaganda e pelo mercado.
É impossível ser feliz como nos anúncios de margarina, é impossível
ser sexy como nos comerciais de cerveja. Ninguém quer ser "sujeito",
com limites, angústias; homens e mulheres querem ser mercadorias
sedutoras, como BMWs, Ninjas Kawasaki.
E aí, toma choque, toma pílula, toma tarja preta. Só nos resta essa
felicidade vagabunda fetichizada em êxtases volúveis, famas de 15
minutos, "fast fucks", raves sem rumo.
O mercado nos satisfaz com rapidez sinistra: a voracidade, o tesão,
o amor.
E pensamos: "E se não houvesse mais desejo? Eu posso escolher o
filme ou música que quiser, mas, nessa aparente liberdade, "quem" me
pergunta o que eu quero?
A interatividade é uma falsificação da liberdade, pois ignora meu
direito de nada querer. Eu não quero nada. Não quero comprar nada,
não quero saber nada, quero ficar deprimido em paz.
Estava neste ponto do artigo quando um Ananda Rubinstein, cientista
política, me enviou um texto chamado "Elogio da melancolia", de Eric
G. Wilson, da Universidade de Wake Forest.
Veio a calhar. Com destreza acadêmica, ele aprofunda meus conceitos.
Ele escreve:
"Estamos aniquilando a melancolia. Inventaram a ciência da
felicidade. Livros de auto-ajuda, pílulas da alegria, tudo cria um
‘admirável mundo novo’ sem bodes, felicidade sem penas. Isto é
perigoso, pois anula uma parte essencial da vida: a tristeza."
Ele continua:
"Não sou contra a alegria em geral, claro... Nem romantizo a
depressão clínica, que exige tratamento. Mas sinto que somos
inebriados pela moda americana de felicidade.
Podemos crer que estamos levando ótimas vidas simpáticas e livres
quando nos comportamos artificialmente como robôs, caindo no conto
dos desgastados comportamentos ‘felizes’, nas convenções do
contentamento.
Enganados, perdemos o espantoso mistério do cosmo, sua treva
luminosa, sua terrível beleza. O sonho americano de felicidade pode
ser um pesadelo.
O poeta John Keats morreu tuberculoso, em meio a brutais tragédias,
mas nunca denunciou a vida. Transformou sua desgraça em uma fonte
vital de beleza.
As coisas são belas porque morrem - ele clamava. A rosa de porcelana
não é tão bela como aquela que desmaia e fenece.
A melancolia, a consciência do tempo finito é o lugar de onde se
contempla a beleza. Há uma conexão entre tristeza, beleza e morte.
Só o melancólico cria a arte e pode celebrar a experiência do
transitório resplendor da vida. A melancolia, longe de ser uma
doença, é quase um convite milagroso para transcender o ‘status quo’
banal e imaginar inéditas possibilidades de existência.
Sem a melancolia, a terra congelaria num estado fixo, previsível
como metal. Deste modo, o mundo se torna desinteressante e morre.
Todo mundo ficaria contente com o que lhe é dado (que, alias, é o
sonho do mercado - a satisfação completa do freguês).
Mas quando a gente permite que a melancolia floresça no coração, o
universo, antes inanimado, ganha vida, subitamente. Regras finitas
dissolvem-se diante de infinitas possibilidades.
A felicidade torna-se pouco - passamos a querer algo mais: a alegria
(‘joy’). Mas, por que não aceitamos isso e continuamos a desejar o
inferno da satisfação total, a felicidade plena?
A resposta é simples: por medo.
A maioria se esconde atrás de sorrisos tensos porque tem medo de
encarar a complexidade do mundo, seu mistério impreciso, suas
terríveis belezas.
Para fugir desta contemplação atemorizante, nos perdemos em
distrações vãs e em um bom humor programado.
Somos de uma natureza incompleta, somos de vagas potencialidades, e
isto faz da vida uma luta constante em face do desconhecido.
Usamos uma máscara falsa, sorridente, um disfarce para nos proteger
do abismo.
Mas, este abismo é também nossa salvação.
Ser contra a felicidade é abraçar o êxtase.
A aceitação do incompleto é um chamado à vida. A fragmentação é
liberdade.
É isso aí.
A felicidade tem um pouco de tristeza.
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