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Com o Progresso Tecnológico, a Miséria Continua
Publicado em: 19/08/2008

A miséria já esteve nas revistas, teses de sociologia

Há mais de dez anos o polonês Bronislaw Geremek escreveu o livro "Filhos de Caim". Geremek é um intelectual que dedicou a vida ao estudo do pauperismo através dos tempos. O resultado é uma viagem ao submundo medieval e moderno por onde vagueia a figura mutante e atualíssima do excluído social. São histórias incríveis de vagabundos, mendigos e prostitutas, um universo grotesco numa espécie de espelho invertido do corpo social. Agora, a Cosac & Naify editou "Os Miseráveis", de Vitor Hugo, o monumental clássico que "descobriu" a miséria épica. Quando chega a vez do excluído de hoje, tudo muda, de repente. Só um cinismo pós-tudo dá conta da nova miséria. Só nos resta apelar para a ironia. Não se fazem mais miseráveis como antigamente. Os humanistas, coitados, estão de mãos abanando, sem assunto. A miséria abandonou a literatura e virou notícia. O miserável já foi uma metáfora; hoje, não é mais. O miserável já foi o símbolo mutante de uma verdade profunda sobre a existência humana. Sem laços materiais, vagando pelos séculos, ele sempre fascinou os artistas. Bosch, Cervantes, Shakespeare, Brecht e Beckett fizeram deles um espelho côncavo do nosso absurdo. Tinham uma estranha forma de liberdade, ostentavam uma nobreza simbólica ao avesso.

Em Shakespeare, eles viam mais que os reis; em Brecht, eram os puros donos do futuro; em Beckett, eram visões do Nada. Os mendigos, no saber, na política ou na metafísica, moravam no futuro. Hoje, o miserável só habita um terrível presente. A miséria já teve seus dias de glória. A miséria já esteve nas revistas, nas teses de sociologia, mas sempre como uma triste "exceção", como uma mancha em nossa esperança. Os miseráveis também habitavam os livros e filmes, eram ótimos temas para as denúncias indignadas de "progressistas", que faturavam altas granas. A miséria já deu muito lucro a artistas e intelectuais; hoje, não vale nada. A miséria deixou de ser uma exceção e virou a regra. Nós viramos a exceção. Lamentávamos a miséria, mas queríamos que ela ficasse lá longe, em periferias e grotões. Queríamos a miséria em compota, "en galantine". A miséria visava nos dar a calma do horror. Aplacava nossa consciência e não interferia na santa paz de nosso escândalo. Ou seja, a miséria já teve uma importante função social. Hoje, os miseráveis nos atacam e não sabemos o que fazer com nossa antiga e egoística "compaixão". E a ironia continua: os miseráveis não são humanistas, o que é um luxo de ricos.

Os miseráveis não sabem que sua vida é "nosso" horror. Na verdade, os excluídos de hoje não têm sentido histórico. Eles nada têm, mas não é que sejam propriamente "niilistas". Talvez mendigos belgas ou franceses sejam, sei lá. Miseráveis não gostam de abstrações. Não se pode falar em "opção", em "projeto", com miseráveis. Seus projetos são irritantemente concretos. Exemplo: "meu projeto é arranjar comida". São materialistas, mas não são dialéticos. São pragmáticos, como os americanos. Eles têm uma paz no sofrimento que nos humilha e até nos dá uma grande inveja. "Que sabem eles que eu não sei?", pensamos. A miséria insiste em continuar na moda. Um "fashion week" que ninguém quer ver. A miséria perdeu o seu charme, como uma coleção da estação passada. É um desfile pardo e sujo a que tentamos assistir de costas. Enquanto os intelectuais lamentam o fim das ideologias, a miséria cresce como uma sinfonia em direção à apoteose. O leninismo não deu conta, "nova ordem" liberal também não. O que irá acabar com a miséria? Ninguém sabe. A miséria permanece um sucesso. É a maior produção do mundo moderno.

Os miseráveis já foram um problema social. Hoje, são um enigma ecológico. Os pobres já tiveram grande valor, aclamados pelo cristianismo. Agora, não passam de um mercado emergente para as igrejas evangélicas bilionárias. Os jovens viam nos pobres a vanguarda política, a "bandeira do futuro", o símbolo da revolução social. Eles iam vingar todos os injustiçados. Os miseráveis eram a "nossa" salvação. Bons tempos. Os miseráveis perderam a "allure" épica que já tiveram. Os pobres não são mais oprimidos. São excluídos. "Excluído" já é um termo excludente. Hoje, eles não estão mais no futuro nem no presente. Vagam nas bordas, como náufragos querendo subir no navio. Não podem. Agora, acabaram os pobres individuados. Só massas excluídas, que a TV tenta esconder, mostrando. Tanto vemos os miseráveis, que eles ficaram invisíveis. A consciência do problema não traz mais problemas de consciência. Bem, se nossos miseráveis realmente perderam o feitiço poético dos tempos de Cervantes ("oh mendigos sujos, gordos, ensebados, falsos pobres, miseráveis da praça de Madri, paralíticos na aparência e declamadores de rezas, criados de bordel, arriai as bandeiras!) É ali que estão: ("a sujeira limpa, a gordura roliça, a fome sempre a postos, o vício sem máscara, o jogo, obscenidades, bailes como em dias de bodas!"), por outro lado, ganharam uma modernidade inesperada.

Sim! O ângulo dos excluídos nos permite uma luz nova sobre o mundo! Eles nos mostram, por exemplo, que a idéia de continuidade histórica, de evolução do espírito é errada. Um país pode andar para a frente ou para trás. É a mesma coisa. As coisas são mais a-históricas do que pensávamos, nos ensinam nossos miseráveis. O espaço e o tempo dos excluídos são diferentes dos nossos. Eles não têm segunda-feira, happy hour, feriado. Estão num espaço baldio, num presente enorme. Os maiores horrores não os impressionam - céticos talvez. A lógica dos miseráveis nos desperta sobre a verdade do século XXI.

 

 

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