O TEMPO - PARTE IV |
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NOSSAS VISITAS |
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Meu Caso de Amor
Com Fidel Castro
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Publicado em: 26/02/2008
Já contei esse "causo" aqui e vou repeti-lo. Por quê? Porque
Fidel Castro morreu. Não da "fatal ceifadeira" que se
aproxima, mas de uma morte simbólica que ecoou dentro de
mim. Quando o vi, vestido de abriguinho Adidas (meu Deus,
por que o "merchandising" do capitalismo esportivo?), quando
o vi, trôpego, olhado com carinho oportunista pelo pavoroso
Hugo Chávez, usando- o para seu lucro de gordo psicopata,
tive um baque de angústia.
Eu que, na adolescência, fui animado a viver pelas imagens
da conquista de Havana, com os heróis lindos e suas
metralhadoras, hippies armados, intelectuais corajosos,
também morri um pouco. Fidel era jovem, macho, libertador,
barbado, tudo. |
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Fui a Cuba em 87 com meu filme "Eu Sei que Vou Te Amar", que passou
no Festival de Havana.
Mas, muito antes de ir, eu sonhava com essa ilha tropical igual à
Bahia (vi depois), onde o socialismo paranóico de Stalin seria
criticado e salvo. Naquela época, o socialismo era nossa religião e
os operários, os santos, símbolos do futuro. Eu era editor do jornal
dos estudantes e, às vezes, ficava até de madrugada na Lapa, na
oficina gráfica. E via os operários como líderes, sentia sua força
calma, uma beleza "pura", uma grandeza simples, superior aos
intelectuais neuróticos. Como amávamos os operários!...
Na alta madrugada, eu os olhava, imprimindo as páginas ainda no
chumbo e eles, com seus braços fortes, pareciam gravuras soviéticas.
Andava atrás deles, com ensinamentos políticos, elogios, sorrisos.
Alguns (hoje vejo) ficavam desconfiados de tanto amor. "Serão bichas
esses garotos, veadinhos?", pensavam com certeza. Não, éramos apenas
comunistas.
Passaram-se 20 e tantos anos e finalmente fui a Cuba. Depois da
derrocada de uma fé atrás da outra, restava-me ainda a paixão pela
paixão que eu tivera por aquela utopia e seu comandante. Comi
lagostas no ex-palácio do milionário Dupont, em Varadero, e ouvi o
jazz do grande Arturo Sandoval. Mas minha primeira impressão foi um
choque: as casas de Cuba não estavam pintadas; todas as fachadas de
tradição espanhola se descascavam em verdes pálidos ou em rosa
desmaiada.
Senti ali o primeiro calafrio de decepção - o descuido com a beleza
e a preservação. Achava que o trabalho socialista era do amor à
coisa pública, o cuidado com a tradição. Não sabia ainda do
burocratismo, dos privilégios da "nomenklatura", do egoísmo e da
fragilidade do sentimento generoso do trabalho coletivo. Aliás, o
que mais me entristeceu no socialismo foi a incompetência geral que
percebia em detalhes, na lentidão das providências, no medo de
decidir que eu via entre os funcionários. O filme "Guantanamera", de
Gutierrez Alea, é um retrato perfeito da ineficiência cubana. Claro
que sei do bloqueio brutal norte-americano e da "ajuda" soviética
oportunista. Além dos desmandos posteriores de Fidel, da repressão,
dos fuzilados, quando vi Cuba caindo nos braços de Kruschev, o sonho
acabou.
Mas, minha fé e meu amor, mesmo em 87, ainda me fizeram esquecer as
dúvidas e decepções. Uma noite, fui a um coquetel no Hotel Nacional.
A grande atração seria o próprio Fidel. Suspense geral entre os
convidados. Tudo ficava meio provisório, porque Fidel iria chegar.
Lá pelas tantas, estou de costas para a porta e senti, como um
vento, a chegada do comandante, cercado de seguranças, que entrou
pela sala como um trem. Fidel foi cercado por todos, latinos,
europeus, asiáticos. Uma amiga a meu lado fez uma crítica "fashion":
"Uniforme de tergal, com esse verde horroroso... Tinha de ser de
puro algodão, sei lá, outro verde..." Senti a crise do socialismo
estampada naquele tergal barato.
Mas, tudo era pequeno diante da presença de Fidel. Era a
materialização de um herói, como se Aquiles tivesse saído da
"Ilíada" pra conversar comigo. Enfiei-me no grupo que o cercava e
consegui chegar até bem perto dele.
"Comandante...ó..." - falei com firmeza. Fidel me olhou, sorriu e me
deu a mão. Arfante, agarrei-lhe a mão e comecei a falar: "Soy de
Brasil... y hago peliculas..." Mas o grupo de tietes era voraz e
Fidel foi empurrado para o outro lado da sala. Firme em meu
propósito, continuei agarrado em sua mão, enquanto ele respondia à
pergunta de um asiático pigmeu chatíssimo falando do "bloqueio".
Fidel jogava como um barco e eu ali, grudado, não largava sua mão.
Lembro-me até hoje que sua mão era quente e larga, a palma generosa
e macia.
Sua mão se aninhava confortavelmente na minha, enquanto eu tentava
lhe falar. "Comandante"... - comecei de novo, gago de emoção. Fidel
me olhou, vagando naquele mar de gente e eu, feito um náufrago da
revolução, pressionava sua mão com vigor, sorrindo-lhe, fixando-me
em seus olhos para ele me ouvir. Mas os tietes canalhas
atrapalhavam.
Foi então que a mão de Fidel começou a sentir demais a presença da
minha. Sua palma começou a estranhar aquele contato. O que fora uma
irmanação política, fraternal de "companheiros", foi virando uma
intimidade física, com as duas peles se colando. Uma finíssima
camada de suor umedeceu a palma do comandante, pois se apagava a
fina fronteira entre a amizade revolucionária e o perigo
homossexual: dois homens ali de mãos dadas.
E a mão de Fidel começou a querer se livrar do firme aperto da
minha. Ela tentou sair pela direita, pela esquerda, se contorceu, se
apinhou em dedos juntos e foi se desprendendo da minha, que insistia
no aperto emocionado. Eu lutava para não largar a palma do
comandante, mas sua mão, cada vez mais sinuosa, impaciente, se
apequenou e num esforço, quase um solavanco, conseguiu afinal se
libertar da minha, enquanto o olhar espantado de Fidel cortou o meu
olhar por um segundo.
"Será que é uma bicha brasileira, infiltrada?" - tenho certeza que
ele pensou. Não, comandante, eu não era uma bicha; apenas um
excomunista. Foi a única vez que vi Fidel. E sei que sua morte vai
me fazer morrer um pouco.
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