O TEMPO - PARTE IV |
|
|
NOSSAS VISITAS |
|
|
|
O Carnaval é
Nossa Loucura Sadia
Publicado em: 05/02/2008
Não é a primeira vez que digo que o
Carnaval virou um tema para o mercado, para as empresas, para os
pacotes turísticos; o Carnaval virou um produto. Eu tenho saudades
da inocência perdida do passado. Lembro das marchinhas toscas que
começavam a tocar nos rádios por volta de dezembro, lembro das
fantasias bobas - legionários, piratas, cow-boys -, influenciadas
pelos filmes norte-americanos, lembro das escolas de samba a pé na
avenida Presidente Vargas, um bando de índios de bigode e penas de
espanador, pintados de preto, seguidos pelas gordas baianas cobertas
de balagandãs, a multidão olhando, apanhando dos cassetetes da PE, a
temida Polícia Especial de boinas vermelhas e Harley-Davidsons. Os
PEs baixavam o cacete nos populares, mas mesmo assim eram amados
pelos espancados, que neles viam leais e heróicos homens da lei.
Doi-me ver a virtualização do Carnaval de hoje, no Rio. O Carnaval
oficial virou uma festa para voyeurs, turistas inclusive brasileiros
na TV e arquibancadas, turistas de si mesmos. Hoje, o Carnaval chega
pronto. Antes, era uma revelação; hoje ele esconde qualquer coisa.
Falta um minimalismo poético nos desfiles de luxo. O Carnaval foi
deixando de ser dos foliões para ser um espetáculo para os outros;
deixou de ser vivido para ser olhado. O Carnaval virou uma ostensiva
competição de euforia, uma horda de exibicionismos sexuais, uma
suruba iminente sem o sensual perfume do passado.
Carnaval sempre foi sexo - tudo bem -, mas, antes, havia uma doce
inibição no ar, havia a suave caretice, uma moralidade mínima, havia
cortesia, havia clima de amor nos bailes e não a desbragada orgia
sem limites. Hoje, há algo de decadência, de compulsivo, uma alegria
obrigatória. Hoje, há os corpos malhados, excessivamente nus,
montanhas de bundas competindo em falsa liberdade, pois ninguém tem
tanta tesão assim, ninguém é tão livre assim. Falta a celulite,
falta o mau jeito, falta o medo, a ingenuidade, o romantismo, falta
Braguinha, falta Lamartine Babo, falta Mário Lago.
O Carnaval de hoje parece uma calamidade pública musicada por uma
euforia desesperada e disputada pelo narcisismo de burgueses e
burguesas se despindo para aparecer na TV. Para descobrir um
Carnaval mais puro, há que ir à Mangueira, às velhas-guardas, aos
blocos de sujos das ruas pobres, aos clowns de Santa Cruz (ainda os
há?); em suma, há que ir aos detritos que sobraram dos anos 40 e 50,
assim como olhamos velhas fachadas entre prédios modernosos.
Quando passam as baterias das escolas, quando uns garotos sambam no
pé, ainda vislumbramos alguns traços de beleza autêntica. Por isso,
acho que a grande tradição do Carnaval está mais presente nos blocos
dos foliões anônimos. Nas ruas, estão os blocos dos anjos de cara
suja, os blocos das escrotas, dos vagabundos, dos bêbados
ornamentais, da crioulada pobre. Podemos ver nas ruas a preciosa
origem do Carnaval profundo. Lá estão os famintos de amor, os
malucos, os excluídos da festa oficial. Só os sujos são santos. Ali
vemos as fantasias de surda revolta contra o trabalho desumano, o
exorcismo da miséria, o prazer de escrachar a beleza óbvia dos
ricos. No Carnaval de rua existe uma coisa mais além da
"imoralidade"; há uma santidade nesta explosão de carne que não se
explica. Pela crítica a essa beleza limpa, vemos uma poesia grotesca
que atravessa os séculos desde Brueghel, Bosch, Rabelais, até
desaguar no barroco brasileiro. Ali, nas ruas sujas, estão as três
raças brasileiras entrelaçadas na esperança de um casamento grupal
doido: negros, brancos e índios dando à luz um grande bebê mestiço e
gargalhante.
Mas, mesmo com sua modernização careta, é melhor entender o Brasil
através do Carnaval do que ver o Carnaval como um desvio da razão.
Como pode o mundo achar o Carnaval uma loucura, esse mundo
irracional de George W. Bush, Dick Cheney, Osama Bin Laden, Mahmoud
Ahmadinejad, de Halliburton, Abu Ghraib e de guerras sem fim? O
Carnaval mostra que o Brasil tem outra forma de "seriedade", mais
alta que a gravidade do mundo anglo-saxão. O Carnaval mostra a
matéria de que somos feitos, por baixo dessa mímica de "Ocidente"
que o Brasil tenta há quatro séculos. Há uma "orientalidade
africana" em nossa vida. A África e os índios nos salvaram, assim
como salvaram os Estados Unidos. Que seria da América sem o jazz? Um
país branco-azedo, cheio de "wasps" tristes. Nosso Carnaval mostra
que o Inconsciente brasileiro está à flor da carne. Já imaginaram um
Carnaval na Suíça? E no Paquistão? Talvez o Carnaval seja uma doença
salvadora, uma epidemia de delírio de que o mundo precisa.
Brasileiro pode não ter espírito público, consciência social; mas,
certamente, tem um Inconsciente à flor da pele, ao contrário dos
países que pagam um alto preço pela Razão triste, por uma felicidade
comedida. Existe uma clara diferença de sexualidade entre nós e os
turistas que contemplam de boca aberta o descaramento de nossos
rebolados. Nós só pensamos em ficar nus, como se quiséssemos voltar
para trás, para uma grande tribo vermelha ou mulata. Há uma pureza
nessa explosão de carne que não se explica, há um desejo de
indianização, há um desejo de fundar um outro país, avesso à
tragédia da pobreza; inconscientemente, queremos uma sociedade
organizada, mas pelo desregramento; justa, mas alegre.
|
|