O TEMPO -  PARTE IV

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               Arnaldo Jabor        

 

A Melodia de Um Milhão de Anos
Publicado em: 04/03/2008

Éuma super-ilha de TV abandonada. Na parede, dezenas de telas apagadas (há quantos séculos?). Na sala de alumínio rastejam lesmas sem cor, medram chapéus-de-sapo, gosmas rebrilhando em pálidos arco-íris, musgos, latejantes águas-vivas, teias com principiantes aranhas.

Esta fauni-flora se nutre pelos tênues raios de Sol que entram na sala, furando a poeira gelada que ainda cobre a Terra. A hipótese de uma lesma passar sobre o "switch" de "power" da mesa de controle geral das telas de TV, nessa ilha eletrônica, era de uma para 20 milhões. No entanto, isso aconteceu.

Ao passar sobre o botão verde, o animal fez inúmeras telas se acenderem. Os bichos moles tremeram a esse estímulo de luz colorida. As telas brilham e falam ao mesmo tempo. Numa delas, gira uma galáxia fotografada há séculos, mostrando de onde viria o grande asteróide. Um homem grita numa tela muda e aponta para um mapa celeste.

Um leitor de lábios leria suas frases de terror: "... diâmetro por volta de dez quilômetros, um detrito que despencou dos anéis de Saturno pela influência gravitacional, há muitos anos do Shoemaker- Levy 9, um cometa de gelo ridículo que se enfiou em Júpiter a 16 de julho de 1994! Não há salvação!

O asteróide chega em cinco meses!" Militares bracejam, mostrando mísseis que poderiam destruir a pedra. Um general gagueja, se explicando: "O problema maior do tiro de um míssil é que são duas balas em direção inversa.

Elas têm de se chocar de frente como dois enormes caminhões nas ’highways’ do espaço!" (O general sorriu da frase - ainda havia tempo para um resto de vaidade). "A ciência é a esperança!", grita outro militar numa sala de mapas, apontando a rota dos foguetes que sairiam em girândola ("wreath formation"), na remota esperança de deter o asteróide.

Outra tela: milhares de judeus no muro das Lamentações, na "kaaba" em Meca, multidões de muçulmanos são pisoteados (nota-se neles um vago prazer no esmagamento, o sorriso do martírio).

A Broadway fervilha como um formigueiro envenenado. Suicidas pulam aos cachos da torre Eiffel. Na base do cabo Kennedy, milhares de pessoas rezam aos pés dos foguetes que partiriam contra o asteróide. Outra imagem: um velho com cara de Papai Noel (um filósofo?) se rasga em gargalhadas maníacas de desespero:

"A grande decepção é que pensávamos controlar nossa morte. A humilhação é descobrirmos que não podemos atribuir culpa a inimigo algum. Não. Nem isso; vamos morrer de uma pedrada! (Chora e ri).

Ele é violentamente interrompido por um cientista-militar: "Canalha, canalha pessimista, nossas ogivas vão atingir o asteróide, temos ainda duas semanas para atirar em "wreath formation!" O militar atira no filósofo, sangue no rosto, o quadro fica vazio, berros, gente correndo. Um locutor desgrenhado: "As câmeras continuam abertas, tragam soluções, por Deus, alguma solução virá!"
Um casal de cientistas berra no vídeo: "Eu e minha mulher é que descobrimos o asteróide! Nós fomos os primeiros! Nós o batizamos de ’Silverstein-Sophie’ e é preciso que todos saibam disso, nossos direitos científicos..." São esbofeteados pela massa.

Milhares de desbundados cantam mantras, sentados na praia (correu a notícia de que ali seria o local exato do impacto) para ter o "last kick of all". Gente se acotovela, olhando dentro das lentes: rostos de pavor querem fugir para dentro do tubo das câmeras, pessoas se beijam, se agarram, se batem, se comem na frente da câmera, em orgasmos trágicos como gritos de tortura.

Depois da semana do horror (a notícia do fim), houve tentativas de adaptação à vinda do asteróide. Discursos dos políticos ficaram mais tranqüilizadores: "Não há motivo para pânico, os estragos não serão grandes, a nuvem de poeira vai baixar em pouco tempo..." Isso provocou uma sórdida esperança.

Um otimismo trôpego marcava as falas nas TVs. O otimismo deu lugar a um violento egoísmo - a expectativa de que a tragédia atingisse apenas os "outros" e poupasse os privilegiados. Floresceu um frisson de racionalizações, de negação, fome de lucro, empresas de abrigos subterrâneos, biosferas para proteger milionários.

A humanidade já se dividia em multidões depressivas caídas pelas ruas à espera do grande "bang" e em esquadrões de otimistas, as "patrulhas da esperança", que cantavam hinos e matavam melancólicos com gritos de "aleluia!". Os mais felizes eram os imbecis, os loucos e os miseráveis, que nada entendiam.

Até que, no dia do cálculo militar perfeito, partiram os mísseis em formação de girândolas nucleares, mas se desfizeram no espaço como buquês de flores dispersas. A pedra continuou sua rota. Cientistas choravam:

"Sobrarão animais marinhos, fungos, talvez as eternas baratas, enguias cegas...!" O casal "Silverstein-Sophie" foi assassinado por uma multidão enfurecida, como se fossem os culpados pela nova Idade do Gelo.

Agora, na sala muda, as lesmas rastejam e as telas mostram a bola de fogo descendo, crescendo nas lentes e a espessa cortina de poeira se erguendo no contraluz do Sol. Silêncio negro. Nada tinha acontecido naquele dia, há muitos séculos (quantos?).

A história da natureza não fora interrompida - vermes, bactérias, fungos continuariam sua vidinha. O drama humano não era nada para os fungos (a história teria sido um fungo?). Acontecera o inevitável: a história humana tinha virado história natural. Por fim, uma última tela se acende, em meio ao negror infinito.

Ouve-se uma orquestra com muito sopro, feliz. Na tela, um casal dança, num sapateado perfeito. Novo frêmito nos bichos que rastejam, sob o som e a música. É um antigo filme. Um casal dança. A cena vai até o fim e recomeça, pelo mecanismo de "auto-reverse" da ilha. Por quanto tempo?

Bem... diria um cientista - como a probabilidade de uma lesma passar pelo botão vermelho e desligar tudo é de uma em muitos milhões, é possível que, séculos depois do fim, nunca pare de passar a cena mais feliz da história humana. É possível que Fred Astaire e Eleanor Powell dancem "Begin the Beguine" por toda a eternidade...

 

 

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