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               Arnaldo Jabor        

 

O Cinema não é mais a Sétima Arte
Publicado em: 28/10/2008

O que filmar sob uma tempestade de imagens?

Hoje em dia, trabalhando como jornalista e comentarista (sou uma espécie de "vendedor de sentido"), muita gente chega para mim e diz: "Como é? ... Você não vai voltar a fazer cinema?" "Sei lá", respondo. "Mas, você não era um "cineastra?" (muitos usam esta palavra-valise de diretor-de-cinema com pederasta - talvez o seja, já levei tanto ferro...). Sorrio, humilhado, e penso: "Que cinema? Comercial, metafísico, político, experimental? O quê?" Retratar o quê? Com que fim? Para a moral, para a politica? Como construir algo com esperança num mundo que se desfaz? Mas vou filmar, depois de 17 anos em jejum, porque não agüento mais somente comentar o óbvio, o comportamento torto do país. Não sei se é uma boa notícia ("mais um abacaxi!" - dirão meus inimigos...).

Assim que resolvi, lembrei do sofrimento de fazer filmes. Os cineastas tinham dois sentimentos básicos: a ansiedade e a frustração. 1) Onde arranjar dinheiro? 2) O filme dará dinheiro? Em geral, nem uma coisa nem outra. Mas o cinema nos cobria com um manto heróico, o mito do "diretor" que compensava nossa dor, que confundíamos com vicissitudes "revolucionárias". Às vezes, o orgulho vinha mais das desgraças da produção do que da qualidade poética da "mise-en-scène".

Já contei isso aqui - presenciei muitos campeonatos de cineastas no bar, competindo em sofrimento: "Eu? Passei dois meses no sertão comendo calango para terminar o filme e quando voltei tava tudo fora de foco..." O outro retrucava: "E eu? Morreram dois atores na filmagem, parou tudo e minha mulher me largou pelo meu assistente!" Eu também sofri. Por exemplo: eu estava na ilha de Itaparica, onde rodei meu primeiro filme, histórico, com 500 figurantes, índios, negros, 12 atores em cena, passado no século XVI, filmado por um garoto (eu) de 27 anos que nunca tinha visto um ator na vida (só no Brasil...), quando um assistente me gritou: "Os índios estão afundando!" Os índios estavam afundando na lama do mangue onde cismei de trabalhar para justificar meu heroísmo. Os guerreiros índios, impávidos, estavam sendo engolidos pelo brejo. Pescamo-los. Depois de o diretor de produção xingar todo mundo, ouvi um zunzunzum entre os guerreiros do quilombo (tinha quilombo também) e perguntei a um deles o que estava acontecendo. Ele me disse tranquilamente: "É que o pessoal está reunido porque resolveu matar o produtor executivo..." Tive de despedir o cara para evitar o massacre.

Era assim. Na minha casa (alugáramos casinhas na ilha) morava um índio. Um índio consultor. Pois ele brigou com a mulher em Salvador e foi para minha casa, mas levou sua jibóia de estimação. De noite, a jibóia andava pelo chão de cimento, com a linguinha de fora, enquanto o índio chorava sua dor-de-corno em carajá. No campeonato de sofrimentos, eu não estava mal... Só perdi para um amigo que também filmou índio e quando a grana acabou, pedia esmolas à tribo: um ovo, um chuchu, uma galinha pelo amor de Deus...

O dinheiro sempre acabava antes do fim. Sempre. E a gente reformava títulos nos bancos. Uma vez, parei a filmagem no meio para correr ao Rio e pedir uma grana a um banqueiro boa praça. Seu apelido era "Joãozinho Mamãe" - lembram, colegas? Eu tinha vendido minha kombi para pagar o empréstimo. Consigo reformar o "papagaio", saio correndo do banco para pegar o avião e voltar para o inferno da ilha, quando dois colegas de faculdade me param na rua: "E aí, cara? A gente aqui de terno e você comendo todo mundo, hein?... Essas atrizes... Você comeu quem?" Resmunguei, com sorriso maroto, fingindo discrição: "Não posso reclamar...." E enfiei pela avenida, segurando as lágrimas e pensando em formicida.

Mas, volto porque na filmagem experimenta-se uma mágica imitação da vida. Durante dois ou três meses, nada mais doce do que a ilusão de comandar destinos, traçando os rumos de beijos, punhais, redenções e condenações.

Nos anos 60, cinema era tudo. Tenho saudades da fragilidade dos filmes antigos, do cinema tênue- poético. Pouco antes de sua morte, conversei com Louis Malle sobre isso, no Rio - falamos do sonho, da utopia dos anos 60, alimentada pelo "Cahiers du Cinema", pelos círculos de fumaça dos "Gitanes" sem filtro, saudades do "frisson" culto das cinematecas. Era a "vraie vie". Dizem que o filósofo Henri Bergson, assim que viu o cinematógrafo, pensou, pensou e disse: "Eu acho que o cinematógrafo será importante porque poderemos saber, no futuro, como os antigos se moviam". Talvez a "essência" do cinema seja mesmo registrar a morte comendo a vida. Hollywood é um lancinante cemitério de estrelas. São Fred Astaire dança no ar do nada, James Dean anunciava sua morte na interpretação de uma melancolia trágica. Sei como dói amar uma morta - eu que me apaixonei por Brigitte Helm em "Metropolis" e amei as pernas perfeitas de Louise Brooks e Cid Charisse na necrofilia da sala escura.

Na época do Cinema Novo, achávamos que era a única arte que enfrentaria a massificação, pois, sendo uma indústria cultural, furava a muralha da ignorância e poderia ser a arte para todos. O que veio foi a revitalização tecnológica do cinema norte-americano, criando uma falsa arte com os efeitos especiais, os grandes filmes de ação e catástrofe que culminaram no evento real do 11 de Setembro. A vida do "cinema de autor" foi breve. Hoje ainda temos, claro, grandes cineastas e filmes, mas vivem num gueto de onde raramente saem poucas exceções, como Tarantino ou Wong Kar Way.

Restou aos autores um cinema de denúncia, de defesa de minorias, da triste solidão de personagens marginais. Mas os filmes que lutam pela razão ou pelo bem soam vagos e solitários. Seus gemidos são ouvidos, mas nada acontece. Agora, com este mundo aí, nada mais inaudível que os lamentos sobre a insânia do mundo. Temos de partir da insânia e não da razão. E talvez dentro do absurdo e da loucura enxergar a vida que ainda não foi sufocada pela tempestade de imagens. Nunca houve tanto som e imagem. O cinema talvez deva buscar o silêncio e o vazio. E narrar vivências pessoais, as únicas intransferíveis.

 

 

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