O TEMPO - PARTE I |
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Velocidade
da vida tira o Sentido das Palavras
Publicado em: 09/12/2008
As idéias não correspondem aos fatos
Além da crise econômica e social, vivemos hoje também uma crise
lingüística. Sim; os fatos estão superando as interpretações. O
mundo aboliu certezas. E palavras novas gemem por existir.
Sempre achei que Joyce enlouqueceu ao escrever "Finnegans Wake". Ele
era gênio, mas pirou nos trocadilhos. Por isso, clamo: "Onde está
você, Joyce, agora que precisamos de palavras novas para descrever o
mundo?"
Todo discurso ficou duro, paralítico diante da velocidade da vida.
Temos de usar outros termos para descrever a loucura que nos tomou.
Como cantou o Cazuza: "as idéias não correspondem mais aos fatos".
As coisas andam tão rápidas que as palavras correm atrás, tentando
um sentido, mas, capengas, não dão conta. Como as pretensas
"limitações ao capitalismo" (o que já é um absurdo) que não seguram
a voracidade de um mercado virtual, como o amor que se esvaiu numa
apropriação indébita do "outro", como o sexo que virou uma máquina
narcisista, como os governos que fingem funcionar, mas apenas dançam
um falso balé para as massas, como a política que não passa de um
parafuso espanado que não faz girar a vida social, as palavras
ficaram vazias de sentido.
Como descrever um homem-bomba? É um suicida ou um feliz renascido
para Alá? Como chamar o sujeito que, na Alemanha, pediu no jornal
para ser morto e devorado - e foi? Como nomear a violência que
explode, com homens torrados nos "microondas" dos morros, com
esquartejamentos de crianças, com bebês no lixo? É crueldade de
alguns "cidadãos desviantes" ou é uma nova espécie de animal que
surge da lama?
Temos de recorrer aos chamados "oxímoros". O que são? O oxímoro é a
figura de retórica mais útil no mundo atual. Nascem de duas palavras
contraditórias, se unem para chegar a um terceiro sentido. São como
bichos de duas cabeças, centauros da sintaxe, para dar conta da
ambivalência do mundo.
Podemos falar de um "silêncio eloqüente" ou "uma eloqüência muda",
como tantos discursos com que o governo atual nos afoga.
Podemos falar também de "uma inocente culpa" para designar as
cassações cassadas na Câmara, ou dos ladrões liberados pelos
tribunais, que já criaram um oxímoro também, os "habeas corpus
preventivos", ou seja, o direito à mentira sem punição.
Que nome dar à era Bush? Democracia ou "demoniocracia", declarando
guerras em nome da paz? E a recente (graças a Deus banida para o
Alasca) Sarah Palin, que era um "pitbull de batom"? O que dizer de
termos como "globalização ética ou capitalismo socialmente
responsável"?
Que nome daremos ao desejo de extermínio que começa a brotar nos
cérebros? Exterminar bandidos, exterminar excluídos, exterminar
superpopulação? Quantas vezes desejamos que os miseráveis
desaparecessem? Que nome daremos à razão exterminadora que se
organiza? "Africa addio?", "New Auschwitz ", "Hello Treblinka"?
Que palavras para designar a paralisia do político brasileiro que
vai muito além do conservadorismo, do desejo do fixo? Que nome dar a
esse melaço da alma que odeia as reformas e o novo? Podemos chamar
políticos de "reacionários", mas como nomear a linfa ancestral que
os alimenta ? Que visgo brasileiro é esse que anima os "empatadores"
do progresso? É uma pasta feita de egoísmo, preguiça, escravismo que
movimenta essas matilhas de canalhas. Que nome dar a isso? A gosma
do Mesmo?
Como chamar o sanduíche misto do público e privado no Brasil? Não há
mais a divisão tradicional, casa e rua, privado e público. Público e
privado estão imbricados num DNA em espiral, uma espiroqueta pálida
que faz a história andar em círculos viciosos.
Como nomear a simbiose entre mídia e política? A notícia cobre os
fatos ou os fatos obedecem ao desejo de notícia? O que é imprensa e
o que é história? O que é virtual e real nesta terra? Media-politics?
Polimídia ? Poli-show? A política como teatro. Dancing days : corpo
de baile do Congresso? Malabaristas do Executivo?
Que outra palavra para nomear a idéia atual de "felicidade"? Ser
feliz hoje é excluir o mundo em torno. Ser feliz é pelo "não". Hoje
no Brasil é "não" ver a miséria, "não" se preocupar com o país,
"não" acreditar em nada.
Ser feliz: nada ver, nada ouvir. Ouvidos moucos, antolhos, visão
seletiva. Neo-felicidade? Ou in-feliz-cidade?
A miséria já foi útil. Diante dela, tínhamos a vantagem da
compaixão. Hoje, diante da solução impossível, nossa compaixão virou
raiva. O pobre virou um estraga-prazeres. Como chamar o sentimento
de tédio e medo diante de um menino de rua na janela do carro?
"Compaixão", não. Ódio e pena? Contra-paixão?
Que nome daremos a essa nova língua, nova ética, que a miséria cria
nas periferias? É uma razão que a loucura produz, os restos que
sobram do "não". É uma "novi-língua" feita de grunhidos, afasia,
novos sentidos de uma miséria desconhecida.
Já surgiu um outro país dentro da fome, com um grande uivo ilógico
que está além da piedade, do bom senso, invencível por qualquer
progresso? Seria o quê? O Bucho? A Coisa?
Como nomear, digamos, o sexo? Neo-sexo? O sexo vestiu a camisa. Na
hora do amor, pensamos na morte. Na hora da nudez, usamos o terrível
capote inglês, que cria o medo na hora da alegria.
A camisa-de-vênus nos protegia contra o excesso de vida. Hoje, como
chamá-la? Amor-medo? Nojo-amor? A camisinha de Tanatos?
E no mundo da "intelligentsia": "gênios inúteis" , "burros cultos",
"neo-cretinos"? E os novos tipos políticos? Neo-conservador,
progressista-reacionário, direitismo de esquerda ou esquerdismo de
direita?
E neste ano que "começa a terminar"? Seremos livres-prisioneiros,
inocentes-criminosos, tristes-palhaços, filhos da bolha,
povo-platéia, o quê? Não há mais palavras para exprimir nossa
indignação ou será que não temos mais indignação para exprimir em
palavras?
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