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"Chiquérrimo"
quer Educar Ricos e Famosos
O livro de Glória Kalil é um manual de boas maneiras num tempo
grosso
Li o livro de Glória Kalil, "Chiquérrimo", e meus olhos mudaram. Eu
não sou chique, mas queria ver quem era. Botei uma bermuda amarela e
saí por aí, levando uma "cachorra" pela mão, com ela se equilibrando
em cima de um par de plataformas douradas, com a calça bem justinha
de modo que sua bunda fosse uma espécie de terceira pessoa a nosso
lado, a bundinha ali, atual jóia maior de qualquer mulher, entramos
num restaurante metido a besta e resolvi mostrar que sou tão chic
quanto aqueles babacas ali. Comecei dando logo um esporro no garçon
que me ofereceu o menu e eu perguntei: "O que se come de bom por
aqui?" E ele me disse com as narinas pálidas: "De tudo, senhor".
"Ah, tem de tudo? Então me traz rã com bertalha!", berrei olhando
para os lados, e vários senhores chiques desviaram os olhos, mas a
minha "cachorra" riu bem alto, para alegria dos chics que puderam
olhar sua bundinha mais calmamente. Aí, eu fiquei meio invocado e já
iamos começar a discutir a relação, quando o meu celular tocou.
Claro que era o Zé da Ilha que começou a me encher o saco e eu então
berrei, para que todos ouvissem: "Dinheiro, meu filho, não me
falta... graças a Deus, agora que vendi minha casa lotérica eu quero
é ser chic!" Eu era o escândalo do restaurante. De propósito, pedi
logo champagne e caviar e minha "cachorra" chegou a cantar a música
do Zeca Pagodinho: “vocês sabem o que é caviar, nunca vi nem comi eu
só ouço falar!”. Aí, eu fiquei olhando a turma ali daquele boteco
chic. Quem disse que eles eram mais chiques do que eu? Eu nasci na "perifa"
e continuo lá, mas dava para ver a caretice dos mauricinhos em
volta.
Notei que ninguém prestava atenção em ninguém. Vi que o principal
problema dos chics falsos é que eles não vêem ninguém a não ser eles
mesmos, e como ninguém vê ninguém, era aquela solidão...
Saí pelas ruas, restaurantes, lojas, teatro, "lounges" e vi. Vi os
sorrisos deslumbrados das botocudas (de Botox) entrando no bar
fazendo bico com os lábios para realçar os "botoxinhos", triunfantes
princesas de um império invísivel, acompanhadas de barrigas e
bigodes, vi o rápido flash da gorgeta-quase-suborno de um gordo para
lhe arranjarem a mesa da janela, vi o olho do garçon grato e
envergonhado e vi sorrisos... Todo mundo sorrindo, bocas abertas,
dentes, dentes, ninguém quieto, todos sorrindo para fotógrafos, vi
os risos para esconder o medo e vi o medo por trás dos risos como
uma epidemia de síndrome de pânico gargalhante, não vi a
displicência chic que invejo nos fleugmáticos, só vi olhos buscando
reconhecimento, vi a vaidade vicejando em cada rosto, ninguém via
ninguém e todos eram vistos só por mim, vi as pernas douradas das
peruas, cobertas de sedas e jóias, vi que o "ancien regime" continua
vigente, que suas toalettes rococós são remotas lembranças de uma
imaginária monarquia cafona, vi duquesas de lycra, baronesas de
silicone, condessas pop com tatuagem na bunda e correntinha no
tornozelo, todas competindo com as putinhas, vi que minha "cachorra"
queria ser perua e as peruas queriam ser "cachorras", vi as
cirurgias reparadoras, bigodes pintados, cabelos acaju, vi pochetes
de dois mil dólares, bolsas de 3 mil, Vuittons falsas, Pradas
fajutas, vi meias brancas em sapatos pretos e meias pretas
vice-versa, vi verdes "fines herbes" entre dentes recém-capeados, vi
zíperes de calças abertos, vi peitos para fora do soutien,
sincronizados com gritinho de falso pudor, vi frases que nem eu,
cafajeste de carteirinha, diria, vi um gordo falando que tinha
trocado uma mulher de 50 por duas de 25, vi peitos abertos com
colares de ouro em cascata, vi blazeres com brasão de almirantes, vi
cabelos implantados como canteirinhos de piaçava, vi unhas grandes
no dedo mindinho e vi a chegada das celebridades, invadindo as
casas, os teatros, como trens barulhentos, gargalhando, luzindo sob
os flashes e sempre furando filas, nariz para cima, os caninos
brancos rindo para os fãs caninos, de caneta na mão com guardanapos
úmidos pedindo autógrafos, vi o misto de desprezo com vaidade das
celebridades dando autógrafos como bênçãos divinas, vi os casamentos
de atrizes durarem duas semanas, entre duas edições de "Caras", vi
roupas de onça, de zebrinha, de tigre e de dálmata, vi barrigas de
cervejudos, vi garçons humilhados por banqueiros de cabelo sujo, vi
metrossexuais querendo ser homossexuais sem ter coragem, vi
maus-hálitos, excreções, rebotalhos, flatulências, eructações,
babugens, oleosidade em caras tensas e a angústia aparecendo nos
sovacos das camisas de seda, vi gargalhadas ocultando falências
iminentes, vi corruptos sendo saudados como heróis nas churrascarias
entre picanhas e chuletas e vi honestos sendo humilhados pelas
esposas por pouco dinheiro, vi braceletes falsos, dentes falsos,
risos falsos, bundas falsas, ricos falsos, vi casais se odiando
diante do prato, vi caras amarradas, mulheres falando como crianças,
ostentando fragilidades sedutoras, vi piadas de mau gosto com
gargalhadas e perdigotos, vi bêbados caindo sobre bêbadas, vi
paparazzi entrando na porrada com câmeras quebradas, vi porteiros
puxa-sacos com rostos transidos de rancor, vi jantares, óperas,
coquetéis, comemorações oficiais, vi casamentos comandados por
peruas de walkie-talkie, vi noites de gala, bailes, premiações.
Afinal pensei: o que é ser chiquérrimo? Na dúvida voltei para a "perifa",
pro boteco do Zé da Ilha. Lá tem pagode, tem até crime, mas há uma
educação pobre, uma delicadeza popular que não vi na cidade. Entendi
o que Glória Kalil diz no livro dela: Chiquérrimo é aquele sujeito
que respeita os outros, que valoriza a amizade, o amor, a beleza,
que quer ser amado, mas não força a barra. Glória Kalil ensina em
seus livros: equilíbrio, harmonia, um convívio respeitoso e feliz.
Glória tem uma utopia: educar a burguesia. Não sei se consegue, mas
seu livro nos ensina que, mal-empregada, até a elegância pode ser
uma forma de violência.
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