NOSSAS VISITAS |
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Eu não Gostava do
Papa João Paulo II
Escrevo enquanto vejo a morte do papa na TV. E me espanto com a
imensa emoção mundial. Espanto-me também comigo mesmo: "Como eu
estou sozinho!" - pensei.
Percebi que tinha de saber mais sobre mim, eu, sozinho, sem fé
nenhuma, no meio deste oceano de pessoas rezando no Ocidente e
Oriente. Meu pai, engenheiro e militar, me passou dois ensinamentos:
ele era ateu e torcia pelo América Futebol Clube. Claro que segui
seus passos. Fui América até os 12 anos, quando "virei casaca" para
o Flamengo (mas até hoje tenho saudade da camisa vermelha,
garibaldina, do time de João Cabral e Lamartine Babo), e parei de
acreditar em Deus.
Sei que "de mortuis nihil nisi bonum" ("não se fala mal de morto"),
mas devo confessar que nunca gostei desse papa. Por quê? Não sei. É
que sempre achei, nos meus traumas juvenis, que papa era uma coisa
meio inútil, pois só dava opiniões genéricas sobre a insânia do
mundo, condenando a "maldade" e pedindo uma "paz" impossível, no
meio da sujeira política.
Quando João Paulo entrou, eu era jovem e implicava com tudo. Eu
achava vigarice aquele negócio de fingir que ele falava todas as
línguas. Que papo era esse do papa? Lendo frases escritas em
partituras fonéticas... Quando ele começou a beijar o chão dos
países visitados, impliquei mais ainda. Que demagogia! - reinando na
corte do Vaticano e bancando o humilde...
Um dia, o papa foi alvejado no meio da Praça de São Pedro, por
aquele maluco islâmico, prenúncio dos tempos atuais. Eu tenho a
teoria de que aquele tiro, aquela bala terrorista despertou-o para a
realidade do mundo. E o papa sentiu no corpo a desgraça política do
tempo. Acho que a bala mudou o papa. Mas, fiquei irritadíssimo
quando ele, depois de curado, foi à prisão "perdoar" o cara que quis
matá-lo. Não gostei de sua "infinita bondade" com um canalha boçal.
Achei falso seu perdão que, na verdade, humilhava o terrorista
babaca, como uma vingança doce.
E fui por aí, observando esse papa sem muita atenção. É tão fácil
desprezar alguém, ideologicamente... Quando vi que ele era
"reacionário" em questões como camisinha, pílula e contra os
arroubos da Igreja da Libertação, aí não pensei mais nele... Tive
apenas uma admiração passageira por sua adesão ao Solidariedade do
Walesa, mas, como bom "materialista", desvalorizei o movimento
polonês como "idealista", com um Walesa meio "pelego". E o tempo
passou.
Depois da euforia inicial dos anos 90, vi que aquela esperança de
entendimento político no mundo, capitaneado pelo Gorbachev,
fracassaria. Entendi isso quando vi o papai Bush falando no Kremlin,
humilhando o Gorba, considerando-se "vitorioso", prenunciando as
nuvens negras de hoje com seu filhinho no poder. Senti que o sonho
de entendimento socialismo-capitalismo ia ser apenas o triunfo
triste dos neoconservadores. O mundo foi piorando e o papa viajando,
beijando pés, cantando com Roberto Carlos no Rio. Uma vez, ele
declarou: "A Igreja Católica não é uma democracia." Fiquei
horrorizado naquela época liberalizante e não liguei mais para o
papa "de direita".
Depois, o papa ficou doente, há dez anos. E eu olhava cruelmente
seus tremores, sua corcova crescente e, sem compaixão nenhuma,
pensava que o pontífice não queria "largar o osso" e ria, como um
anti-Cristo.
Até que, nos últimos dias, João Paulo II chegou à janela do
Vaticano, tentou falar... e num esgar dolorido, trágico, foi
fotografado em close, com a boca aberta, desesperado.
Essa foto é um marco, um símbolo forte, quase como as torres caindo
em NY. Parece um prenúncio do Juízo Final, um rosto do Apocalipse, a
cara de nossa época. É aterrorizante ver o desespero do homem de
Deus, do Infalível, do embaixador de Cristo. Naquele momento, Deus
virou homem. E, subitamente, entendi alguma coisa maior que sempre
me escapara: aquele rosto retorcido era o choro de uma criança, um
rosto infantil em prantos! O papa tinha voltado ao seu nascimento e
sua vida se fechava. Ali estava o menino pobre, ex-ator,
ex-operário, ali estavam as vítimas da guerra, os atacados pelo
terror, ali estava sua imensa solidão igual à nossa. Então, ele
morreu. E ontem, vendo os milhões chorando pelo mundo, vendo a praça
cheia, entendi de repente sua obra, sua imensa importância. Vendo a
cobertura da Globo, montando sua vida inteira, seus milhões de
quilômetros viajados, da África às favelas do Nordeste, entendi o
papa. Emocionado, senti minha intensíssima solidão de ateu. Eu
estava fora daquelas multidões imensas, eu não tinha nem a velha
ideologia esfacelada, nem uma religião para crer, eu era um filho
abandonado do racionalismo francês, eu era um órfão de pai e mãe.
Aí, quem tremeu fui eu, com olhos cheios d'água. E vi que Karol
Wojtyla, tachado superficialmente de "conservador", tinha sido muito
mais que isso. Ele tinha batido em dois cravos: satisfez a
reacionaríssima Cúria Romana implacável e cortesã e, além disso,
botou o pé no mundo, fazendo o que italiano nenhum faria: rezar
missa para negões na África e no Nordeste, levando seu corpo vivo
como símbolo de uma espiritualidade perdida. O conjunto de sua obra
foi muito além de ser contra ou a favor da camisinha. Papa não é
para ficar discutindo questões episódicas. É muito mais que isso.
Visitou o Chile de Pinochet e o Iraque de Saddam e, ao contrário de
ser uma "adesão alienada", foi uma crítica muito mais alta,
mostrando-se acima de sórdidas políticas seculares, levando consigo
o Espírito, a idéia de Transcendência acima do mercantilismo e de
ditaduras. E foi tão "moderno" que usou a "mídia" sim, muito bem,
como Madonna ou Pelé.
E nisso, criticou a Cúria por tabela, pois nenhum cardeal sairia do
conforto dos palácios para beijar pé de mendigo na América Latina.
João Paulo cumpriu seu destino de filósofo acima do mundo, que tanto
precisa de grandeza e solidariedade.
Sou ateu, sozinho, condenado a não ter fé, mas vi que se há alguma
coisa de que precisamos hoje é de uma nova ética, de um pensamento
transcendental, de uma espiritualidade perdida. João Paulo na
verdade deu um show de bola.
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