O TEMPO - PARTE III |
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O Coringa de
Heath Ledger nos Fala do Futuro
Publicado em: 29/07/2008
Não haveria Obama e esse Batman sem Osama
Fui ver o Batman, claro. É impossível ignorar esta oitava arte que
surge em Hollywood: os efeitos, os computadores criando odisséias
tecnológicas homéricas do século XXI. O filme é espantosamente
constelado, "risômico", explodido, até difícil de acompanhar para um
linear tropical como eu. Pensava em ver mais um show tipo "Missão
Impossível", mas não é. É mais.
Os filmes-catástrofes ou as aventuras dos efeitos especiais pareciam
dizer: "Nós somos a America, nós temos a cultura da certeza! Aqui
tudo tem princípio, meio e fim. Aqui, tudo está sob controle e
termina como nós queremos. Aqui há a competência!"
Mas, aí, um belo dia, os aviões se chocaram com as torres em NY. E
dá para ver que a queda do WTC está ali, como uma cicatriz na
dramaturgia norte-americana. O 11 de Setembro criou uma era de
ambivalência para o cinema. Acabaram mocinhos X bandidos.
O sintoma fica claro com a extraordinária interpretação de Heath
Ledger (O neo-Coringa), que gira isolado criando uma obra-prima rara
no cinema, uma ilha de cinismo contemporâneo, misturando bem e mal,
misturando horror e simpatia, matando com um sadismo sofisticado e,
depois (plano inesquecível), saboreando o vento fresco da noite na
janela de um carro, com sua cara de palhaço desenhada por um Pollock
ou Rauchenberg. "Escolhi o caos" - ele diz para o Batman. Heath, de
certo modo, faz uma crítica ao próprio filme. Heath é quase uma
paródia do "grande espetáculo", é um marginal dentro do elenco.
Ele nos aponta para um outro filme que poderia existir, alem das
raízes moralizantes e aristotélicas deste, bem escondidas, sem
dúvida, mas que estão lá. Heath lembra Johnny Dep em "Piratas do
Caribe", lembra também a genial presença de Anthony Hopkins em
"Silêncio dos Inocentes". Os três atores estão adiante dos filmes
que lhes pagam. Os três, Hannibal, the Canibal inclusive, nos
fascinam porque parecem estar mais além de uma moral antiga, que
eles contemplam, do outro lado do Bem. Hannibal e Heath parecem
saber mais do que nós, que vivemos ainda mergulhados em dúvidas
morais e culpas.
Nada mais atraente que a psicopatia elegante. No mundo cruel de
hoje, todos queremos ser como Hannibal, longe de uma arcaica
compaixão.
O Coringa nos apavora e nos atrai, e não conseguimos odiá-lo
completamente porque ele é extremamente contemporâneo. É como se ele
dissesse: "Nenhum saber, nem ética, nada vai apagar o animal feroz
que nos habita. Eu sou uma vanguarda". Ele diz para um perplexo
Batman: "Eu não quero te matar; você me completa". E completa: "Não
sou um monstro; estou além da curva..." Heath é apavorante porque
não tem motivo claro para agir. Sua única regra é mostrar o absurdo
de querer impor ordem no caos. Ele encarna os impulsos destrutivos
humanos inexplicáveis. Como Hannibal. Ou, na vida real (se ela ainda
existe), como o Muhamed Atta, o chefe dos terroristas do 9/11.
Ele não tinha religião, não cria em Alá, não tinha ideologia
política, era químico na Alemanha, não tinha motivos. Ele queria
fazer o impensável, o inominável, acima de qualquer crime, queria
conhecer aquela fração de segundo entre a vida e a morte, com a
parede do WTC tocando o nariz do Boeing.
E aí, pensamos: para que praticar o bem se ele não é mais possível?
Quando pedimos o bem, falamos como de uma harmonia perdida. Será que
ela já houve? Invenção platônica, iluminista neste mundo sujo?
Pensamos com o corpo, queremos que o mundo seja um "todo harmônico",
como o nosso organismo. A idéia de "fragmentário" gera angústia
porque lembra a morte.
E o mal?
O mal virou uma necessidade social. Não dá mais para viver sem
praticar o mal. O mal é um mecanismo de defesa. Ao denunciar o mal,
vivemos dele. Eu lucro, sendo um cara legal que denuncia o mal e
assim escapo da fome, comendo a comida de quem lamento. O bem não dá
filme. Já os psicopatas estouram bilheterias. Se não há um mal
claro, como seremos bons? O mal é sempre o outro. Nunca nós. Ninguém
diz, de fronte alta: "Eu sou o mal!" Ou: "Muito prazer, Diabo de
Oliveira..." Como inventar uma "praxis" do bem? O que é o bem hoje?
Será lamentar tristemente uma impotência, um negror melancólico?
Heath Ledger, o Coringa, nos lembra inevitavelmente o Osama Bin
Laden. Ele também veio sem motivo, do nada, e fez o maior
filme-catástrofe da história. Não haveria esse Batman sem Osama; não
está no enredo - está no ar.
Achávamos que haveria um futuro confortável no século XXI. Mas Osama
não está em nosso tempo. Osama nos fala de fora do tempo, da
história. Osama mora na eternidade. Queremos desesperadamente
explicá-lo à luz da razão, mas ele é imune a interpretações. Osama
nos fez ver a grande montanha de lixo que se escondia sob o
progresso, a razão do Ocidente.
Desmoralizou a América, nosso mito de competência, e dirigiu,
comandou todos os erros pavorosos da vingança norte-americana. Nunca
a América errou tanto como sob esse estafermo do Bush. Toda a
trapalhada ocidental, o mal ocidental escondido sob o "bem",
apareceu no eixo ocidental do mal.
E Obama? Agora ele surgiu, prometendo o bem. Obama é uma antítese
simétrica do Osama. Será? Será que, depois de uma década do que
Norman Mailer chamou de "tempestade de merda", a história deseja um
espasmo de mudança para o "bem"?
Pode ser que Obama encarne uma tendência histórica, não da América
apenas, mas do mundo. Não é o messias, claro. No entanto, mais
importante que sua eleição, é o fato de que ele pode eleger uma nova
consciência na América. Pode ser que descubramos que o mundo atual
não é só esta bosta que os reacionários criaram. O mundo tem mil
possibilidades de riquezas, de milagres científicos e culturais, que
estão esmagados pela estupidez endêmica dos fundamentalistas dos
EUA. Uma vitória do Obama, depois de Osama, depois de Batman, pode
não apenas combater o mal do mundo, mas restaurar um bem perdido.
O Coringa genial de Heath Ledger é o sintoma de um mal ridículo que
tem de acabar.
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