NOSSAS VISITAS |
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Picasso nos dá
Vontade de Viver
A exposição do maior artista do século em S. Paulo amplia nossos
olhos. Picasso mudou o olho humano. Cèzanne já tinha pintado a
matéria íntima da natureza. (Ele disse: "Eu sou a consciência da
paisagem que se pensa em mim"). Van Gogh já tinha pintado o tempo.
Isso. Cèzanne recortou o espaço e Van Gogh captou o tempo. Olhem um
Van Gogh e vejam o tempo passando sobre as coisas. Nada pára em Van
Gogh: a igreja se move, os lilases ventam, a matéria fervilha em
cada pincelada, as cadeiras, as camas, as coisas passam, em
progresso, parece que vemos os átomos girando, os girassóis rodando,
vemos a morte passando no rosto do doutor Gachet ou da Arlesiana.
Depois, Picasso chega e pinta os dois: o espaço-tempo. Sua viúva
disse que Picasso não podia ficar com a mão parada. Ele era
táqui-psíquico, não parava um segundo de ver o mundo dentro e fora
dele. Mexia em tudo: de um peixe comido, ele tirava a espinha e
fazia uma cerâmica, um selim de bicicleta, ele transformava em cara
de boi, o regador em um homem, um automóvel em macaco, um beijo na
praia em uma fome voraz entre corpos, virava uma mulher em flor e
flor em mulher. Sua mão não podia parar - tinha de ficar desenhando
para não enlouquecer.
Fez cerca de 36.000 quadros, além de esculturas, cerâmica, tudo.
Esta exposição aqui na OCA de São Paulo (mais um gol de placa da
Brasil Connects) mostra não a "importância" de Picasso na Arte, mas
justamente sua recusa de ser "importante", de ser "metafísico", de
ser um pintor "acima" da vida e de todos nós. Ele sempre quis ser um
de nós. Picasso é um pintor popular. Por isso é que as filas se
formam para ver seus quadros e esculturas. As pessoas vão ali para
se ver. Picasso era um rude espanhol, um torcedor de futebol, um
comedor de mulheres, um glutão, um sacana aficionado por touradas e
que não queria humilhar ninguém. Picasso era um espantoso retratista
da realidade, só que a "realidade" para ele, não era essa série de
arestas e volumes verossímeis a que estamos acostumados, pousados no
horizonte da perspectiva burguesa. Picasso também nunca acreditou na
babaquice do abstracionismo metafísico, que almeja uma platônica
essência de algo finalmente flagrado, "para longe", "mais além" da
aparência suja do mundo. Picasso sempre amou justamente esta face
suja do mundo, sempre viveu em busca da figura, sim, da figura, mas
que, para ele, era muitíssimo mais constelada, muito mais complexa e
mutante que as chatas realidades que o burguês chama de "naturais"
ou "corretas". Picasso sabia que nada existe "au delá de la vie",
nada além da vida, nada "over the rainbow", nada além do nosso olho
que, esse sim, pode ser ampliado como um telescópio ou um
caleidoscópio, para ver muito mais, se não estiver domesticado por
ideologias ou delírios babacas. Picasso nunca precisou dos excessos
do Dada ou do surrealismo para sair "fora" da aparência. Sabia que
isso era impossível e ridículo, de certo modo. Nunca precisou de uma
realidade "supra", em relação à figura naturalista. Picasso não
deformava nada, como costumam dizer; ele é quem tinha outra forma,
seu olho negro profundo que nos fita sem parar parece dizer: "Eu
vejo todos os lados das caras, dos corpos, eu vejo as figuras dentro
das outras, eu vejo o espaço entre as pessoas, as linhas invisíveis
que as ligam, os vazios dentro delas, eu vejo também o ridículo da
beleza como algo 'sublime' a se chegar. Não há nada a se atingir.
Por isso, minha frase "Não procuro; acho" é tão mal interpretada.
Ela não quer dizer que eu tenho talento ou algo assim. Não. Essa
frase quer dizer que eu não sei, antes, para onde estou indo; eu só
chego ao quadro ao final. Raramente sei o que farei, a priori; por
isso, (cá entre nós), meu pior quadro é 'Guernica', feito sob
encomenda para criticar a guerra... É legal, mas meio alegórico..."
Picasso é um grafiteiro. Não busca "auras". Seus quadros são até mal
acabados, nas coxas, como o cotidiano. Picasso é sadio. Nunca teve a
romântica amarelidão do "sentido" ou do "belo". Adorava viver e
pintava a própria vida, felicíssimo, de bermuda, rindo, comendo,
trepando e fumando, nunca acreditou que o "artista só é grande se
sofrer" - o artista só é grande se viver.
Estive outro dia no Museu Picasso em Paris e na exposição da
Pinacoteca Francesa, que exibe a coleção de sua última mulher
Jacqueline e, na saída, Yami Araújo diz a meu lado: "Picasso me dá
vontade de viver!" É isso mesmo. Ele não nos faz sonhar com nada que
não esteja presente, palpável, vivo. Em sua arte, há uma permanente
luz até de caricatura. Ele não tinha uma "mensagem" para passar ao
mundo ou besteiras assim. Ele pintava a própria mudança, seu devir,
seu envelhecer, suas comidas e amores, até os maravilhosos e
eróticos quadros de velhos apalhaçados, de mosqueteiros loucos nos
últimos meses de seus 92 anos de vitalidade. Picasso pintava a forma
das coisas desconhecidas. Peguem um acrobata seu, um beijo na praia,
um minotauro estuprando uma virgem, peguem suas amantes viradas ao
avesso, peguem tudo e ali só existirá seu cotidiano muito parecido
com o nosso. Os grande artistas buscam a realidade, pois como disse
Woody Allen, "ninguém sabe o que é a realidade, mas ainda é o único
lugar onde se come um bom bife". Um historinha do nosso grande Iberê
Camargo também ilustra o que digo sobre Picasso. Iberê passou a vida
pintando objetos e obsessões reais que ele viveu e sempre chamado de
"abstrato". Uma vez, numa exposição sua, ele veio indignado reclamar
para o Mario Carneiro, (outro pintor e discípulo): "Mario... veja
esse quadro (diante deles uma tela aparentemente abstrata). Pois, eu
pintei aqui essas "pirocas encaramboladas com chapéus" e veio aquela
mulher idiota ali e me disse que eram "barcos na Baía de Guanabara".
Não é um absurdo?"
Nós não vemos Picasso; ele é que nos vê. Por isso, faz tanto
sucesso. Ele nos explica. Picasso sabia que a morte acontece, mas
não existe. Só existe a vida.
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