O TEMPO - PARTE II |
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Só os Visionários
Enxergam o Óbvio
Publicado em: 07/10/2008
No dia das eleições, a esperança renasce
Pego o avião e vou ao Rio votar. Lá embaixo, a cidade se amontoa em
milhares de casebres como uma grande inflamação cor-de-tijolo
subindo nos morros - uma casca de feiúra e tristeza encurralando a
beleza natural do mar e o desenho sensual das montanhas. Lá está o
verdadeiro Rio, a metástase crescente de um câncer original de
descaso, anomalias populistas e economia precária, fragilizada
depois do fim do Estado da Guanabara. Penso: "não tem solução... Que
adianta votar em alguém diante deste labirinto?" "Quem vai dar jeito
nisso?" - pergunta a manchete do "O Globo". Sei lá - a cidade está
emperrada desde a teimosia da honrada burrice do Geisel, que disse
na época: "Não consultei ninguém para acabar com o Estado da
Guanabara; eu sabia que era bom". Pois não era, general. O senhor
quebrou o Rio e nos fez engolir os vícios do atraso fluminense.
Militares têm a arrogância, o prazer sádico de fazer aquilo de que
todos discordam. Assim, destruíram o palácio Monroe por nada,
criaram o imundo minhocão sobre o centro histórico do Rio na praça
XV, acabaram com as cachoeiras das Sete Quedas sem avisar ninguém,
puseram as usinas nucleares poluentes e perigosas no paraíso de
Angra dos Reis.
Por isso, olhava o Rio lá embaixo com amargo desgosto. Só que, a meu
lado no avião, ia o economista Paulo Rabello de Castro, diretor do
Instituto Atlântico, mais dedicado à busca de soluções do que à
angústia dos problemas. Paulo tem fama de visionário para uns e de
pragmático para outros. Eu o considero um mix: visionário do
pragmatismo. Ensaio com ele um papo desesperançado de carioca
típico, mas Paulo revida e dispara várias idéias animadoras,
arquejante de fé, anulando meu sorriso desiludido que tanto nos
consola, justificando a depressão e o chope. Paulo é rápido e
inteligente e fala em possibilidades para o Rio. "O Rio tem saídas
múltiplas", anuncia Paulo, de dedo em riste, comendo o triste
escasso biscoito de goiabinha que a Gol oferece (será que o Nonô
Constantino planta goiabais?) -: "o Rio pode brilhar de novo...." E,
pálido de esperança, me desfia soluções. Seu programa (imaginário ou
realista?) seria uma legislação especial que desse conta do vazio
deixado pelo sumiço do Estado da Guanabara, talvez a criação aqui de
uma Zona Franca Financeira, algo como Hong Kong. Nas favelas e
outras periferias de "invasão", a viabilização de títulos de
propriedade aos moradores mudaria a mentalidade das favelas, com os
novos e inúmeros proprietários que, defendendo seus bens,
sentindo-se mais cidadãos, resistiriam melhor a milícias e tráficos.
O Rio já é por vocação, vide TV Globo e pólos de cinema, um centro
de produção de arte e cultura, de entretenimento, design, moda. Por
que não investir fortemente neste vértice? Nos fundos da cidade, em
remotos subúrbios, poderia haver a criação de Zonas de Processamento
de Exportação (ZPEs). Com mão-de-obra abundante, possibilitaria
condições reais de emprego e desenvolvimento. E a cidade, da beleza,
com o turismo imensamente incrementado? Quando Paulo falava, me
bateu a certeza inapelável: o verdadeiro visionário enxerga o óbvio
que ninguém vê. No caso do Rio e em (outros municípios) nosso
labirinto "corrupto-burocrático-indolente-incompetente-paralítico" é
tão impenetrável que a melhor maneira de combatê-lo seria acoplar
fatos e obras novas, inéditas, não testadas, que reajam contra o
sistema velho, criando oposições, alternativas e corroendo velhos
hábitos. Uma ZPE nos fundos do Rio pode mudar uma região, econômica,
cultural e psicologicamente. Só as coisas podem mudar as coisas. Em
São Paulo, por exemplo, Kassab fez o óbvio: sem ranços ideológicos,
teve imaginação, limpou a cidade, civilizou centros decadentes e
marginais.
No Rio, se Gabeira for eleito, poderá colocar sua vivência de
aventura e luta numa administração imaginosa, original, até em
experiências público-privadas como foi o Museu do Futebol em São
Paulo. Mas, nada que seja parecido com os factóides catastróficos do
ex-prefeito e atual blogueiro César Maia, que inviabilizou o projeto
viário de Lúcio Costa para a Barra através do monstrengo da Cidade
da Música, um transatlântico encalhado nos cruzamentos, além do
custo astronômico, como apontou o especialista Hugo Hamanno, outro
dia em "O Globo". Nesta nova fase política para o Rio, São Paulo,
Belo Horizonte, não dá mais para engolir os teóricos do impossível,
os analistas críticos do labirinto sem solução. Um pensamento
puramente quantitativo, lógico, não dá em nada, como os famosos
apelos ao bom senso dos abraços na lagoa de camisa branca. Não há
como resolver por dentro a paralisia. Como limpar a banda podre da
polícia? Como transformar a Câmara Municipal em templo de
honestidade, como desburocratizar a cidade, como desfazer favelas e
tráfico, como resolver a segurança? Quem faria esta grande mudança?
Onde haverá tão gigantesca e utópica vontade política, onde arranjar
os bilhões e os longos anos de reformas? Quem faria? Um
superprefeito com superpoderes, um exército de burocratas
arrependidos, uma súbita câmara de vereadores purificados,
faxineiros do bem, pelotões de generosos e solidários, uma
revolução? Não adianta.
Não dá mais pé vermos de um lado os práticos homens do mal, dentro e
fora da política, roubando e impedindo o progresso e, do outro lado,
os desesperançados teóricos da análise crítica lamentando
impossibilidades. Agora que parece que o Rio de Janeiro vai se
livrar de décadas de populistas e mentirosos, pode ser que entremos
em nova era política e administrativa. As prefeituras têm de ser o
lugar de experimentos imaginosos. Em vez de serem chocadeiras para
deputados federais e senadores, as prefeituras têm de ser as células
descentralizadas do "novo", centros de experimentação de soluções
maiores, células sim que podem regenerar as atrofias do sistema
maior. Essas coisas graves me surgiram enquanto Paulo falava com seu
biscoito de goiabinha e me seguiram até a hora em que votei na
maquininha democrática.
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