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               Arnaldo Jabor        

 

A Viagem com Lucy nos Céus de Diamante
Publicado em: 30/12/2008

Meu primeiro ácido com os Beatles e o AI-5

A paisagem começou a tremer como gelatina. Os morros em volta da praia dançavam rumba. Eu pensei: "Bateu. Bateu o LSD - finalmente vou conhecer a loucura".

Fui andando pela praia deserta e sentei à beira d’água. As ondas quebravam em câmera lenta, como se o mar fosse de chumbo líquido. Eu tinha tomado meu primeiro ácido lisérgico, o sunshine, para esquecer o AI-5, decretado semanas antes, em 1968. A barra começou a pesar mesmo a partir daí.

O LSD tinha pintado na praça havia pouco tempo. Vinha em pílulas, em pedacinhos de papel embebido com a substância, vinha em microgrãos como sementes de mostarda e alguns eram tão fortes que a viagem durava até 18 horas. O que essa droga tinha de "bom", hoje posso dizer, era a chance de você se ver "fora" da história, ou melhor, ter a impressão disso.

A sensação da paisagem dançando era extremamente agradável. Tudo parecia um desenho animado musical, coloridíssimo, provocando-me uma imensa euforia. Eu estava sentado na areia e uivava de felicidade. Tudo parecia perfeito, ali, diante do mar.

Foi então que... eu olhei para minhas pernas nuas dobradas em "xis"e minhas pernas começaram a murchar e inchar, pulsando, como se tivessem vida independente de meu corpo; minhas pernas ficavam quase transparentes e finas como tentáculos de um extraterrestre ou de uma grande lula ali naufragada na beira do mar.

Subitamente, a felicidade deu lugar a um grande medo. Começara o terror. Eu buscara um "desbunde" alegre e florido como o dos norte-americanos do flower power, mas saquei ali que a devastação de 68 nas "melhores cabeças da minha geração" seria tão brutal como a tortura que enchia os quartéis de gritos.

A viagem continuou a piorar. Minhas pernas eram tentáculos e meus braços flutuavam trêmulos diante do mar, e a rumba das montanhas deu lugar a um fundo sentimento de solidão negra. Eu comecei a me sentir como um embrião abandonado a beira-mar, sem pai nem mãe, e percebi que tinha caído no buraco de uma bad trip, uma viagem sem volta. De repente, tudo ficou em preto-e-branco e, de dentro de uma pequena lagoa de água parada, uns urubus manquejavam, com seu ar burocrático. E então, começaram a levantar vôo em minha direção, lentíssimos, com as asas batendo como chumbo, flap-flap, pesadíssimos no ar, e eu pensei com pavor: "Estou perdido, nunca mais vou voltar..."

Então, eu vi, lambidos pela maré, uns soldados deitados que me apontavam fuzis; eu sabia que eram troncos de árvore ali jogados, eu sabia que toda alucinação tinha uma base realista, mas, mesmo assim, eu "via" realmente os soldados me apontando as armas como se tivessem desembarcado para me fuzilar. E eu ouvia a voz de Alberto Cury, o locutor oficial, lendo o Ato Institucional nº 5 com sua voz linda que me tirara o direito à vida: "fica abolido o habeas corpus, o Congresso será fechado etc..."

No ar, flutuava imensa a cara de Gama e Silva, o ministro da "Injustiça" que escrevera o ato, e entre as nuvens eu via as bochechas do presidente Costa e Silva.

Vi, no outro canto da praia, uma mulher morta, em decomposição, meio comida de peixes, uma mulher que podia ser um banco de areia, mas que era uma mulher morta sim, me olhando com órbitas vazias, e eu murchando e inchando, os braços e pernas pulsantes. A mulher estava morta, mas sorria um riso negro, sem dentes, não tinha olhos, mas me contemplava, acusadoramente.

Resolvi me salvar e fugir para um lugar qualquer, onde eu tivesse paz. E a grande lula de pernas moles correu até uma tendinha de beira de estrada, onde havia uns dez velhos pescadores tisnados de sol que me olharam desconfiados e para quem eu não podia dar nenhuma "bandeira", não podia deixá-los ver que eu estava muito louco ali viajando num ácido político. Aí, piorou tudo. O Brasil rural, pesqueiro, caiçara de beira de estrada aprofundou minha solidão. Que cacete fazia eu ali no meio daqueles homens? Dentro da venda, estava um colega meu de viagem, que delirava num comício espantoso sobre a vida e a morte para os pescadores.

Aí, eu entendi que a política ia virar uma piada ridícula dali para a frente, um pesadelo cômico.
Então, eu fugi dali correndo e voltei a andar pela praia, mas comecei a ouvir um fino e agudo ruído como uma broca e "vi-ouvi" a broca de uma das mais sutis torturas conhecidas do DOI-Codi: um dentista militar abria o dente do infeliz e botava a broca direto no nervo vivo, o que, diziam, fazia você denunciar a própria mãe. Comecei a "ver-ouvir"outras torturas como a dos choques elétricos nos testículos dos torturados com a música "As curvas da estrada de Santos", de Roberto Carlos, tocando bem alto para abafar os gritos dos desgraçados.

Passei por outro companheiro de "viagem", muito louco também, deitado dentro da lama verde de um manguezal, de onde voaram outros urubus de chumbo, ele ali, quietinho no brejo, só com a cabeça de fora: "maior barato", me disse ele; "barato e guerra", pensei eu.
O Brasil estava dividido assim: de um lado, os "muito loucos" no "maior barato" e, de outro, heróis suicidas, que se matavam na guerrilha urbana, sem a mais remota chance de vitória. O meu companheiro da lama passou andando como um faquir do Ganges pingando limo e o outro doidão de casaco de ovelha passou gritando num incontrolável ataque de riso e lágrimas, discursando sobre a necessidade de os peixes se revoltarem contra os pescadores.

Eu intuía, ali na praia, que alguma coisa se fechara para sempre, que uma "alma de violino" se quebrara para sempre no Brasil, um buraco no tempo matara uma vocação brasileira pura que tinha existido e que se apagava.

E digo isso hoje, 40 anos depois. A sigla misteriosa do LSD, "Lucy in the skies", não flutua mais nos céus com diamantes; mas, não há duvida: infelizmente, estamos vivendo uma "bad trip". Até quando?

 

 

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