Com base em mais de 217 horas
filmadas ao longo dos seis anos em que o rapper MV Bill e seu
produtor, Celso Athayde analisaram o universo das crianças e
adolescentes que trabalham no tráfico, foi produzido o documentário
Falcão – meninos do tráfico.
A pesquisa dramática, iniciada entre 1997 e 1998, contou com a
participação de mais de cem garotos residentes em favelas de vinte
capitais do país. Dezessete foram selecionados para servir de fio
condutor. A trama se construiu sobre a exposição dos motivos que
levaram crianças e adolescentes a entrar para o tráfico de drogas,
tendo por cenário o ambiente hostil das favelas.
O projeto inicial era fazer um videoclipe para divulgar a faixa
Soldado do Morro, do CD Traficando Informação, de 1999, de MV Bill.
Durante as gravações, porém, dezesseis dos dezessete garotos foram
mortos, sendo quatorze em apenas três meses. O vaticínio da morte,
como futuro esperado, transparece no depoimento de um falcão: “Se
morrer, nasce outro que nem eu, pior ou melhor. Se morrer, vou
descansar”. O que era para falar sobre a vida dos meninos,
acabou falando sobre a morte.
Os autores, sensibilizados com a tragédia, consideraram que o
videoclipe já seria, então, insuficiente para interferir na
realidade. Fizeram surgir o Projeto Falcão com uma abrangência
maior, constando do documentário, um livro como mesmo título do
documentário, tratando dos bastidores das gravações, e um filme a
ser exibido mundialmente.
As cenas da versão de 54 minutos, editada por técnicos da Rede Globo
e exibida no programa Fantástico, impressionaram milhões de
telespectadores que passaram a se condoer e questionar o dia a dia
das favelas com suas populações pobres, negras e totalmente
marginalizadas.
As “classes superiores” permaneceram diante de seus televisores
estupefatas, como se o mosaico das desigualdades sociais expressas
na cartografia das cidades grandes não existisse há décadas.
Demonstraram-se indignadas, como se a rajada de realidade não
resultasse de disputas e de interesses econômicos, sociais e
políticos e estivesse longe do cotidiano das grandes cidades.
Mas a indignação não partiu apenas dos telespectadores do programa
semanal. O furor alcançou, também, parte da crítica especializada
que classificou o documentário como sensacionalista, a serviço da
Globo e que nada demais acrescentou ao demonstrar que as crianças no
Brasil estão envolvidas com a nefasta indústria do tráfico.
Os traficantes temerosos da repercussão do vídeo ameaçaram de morte
os produtores que no primeiro momento desautorizaram a veiculação do
documentário. A liberação só veio depois de tensas tratativas,
envolvendo o alto escalão da Globo e da Polícia Federal que
instaurou inquérito para apurar as responsabilidades pelas ameaças.
São válidas e várias as razões dos críticos para questionar o valor
do discurso presente no vídeo exibido e as intenções da emissora que
selecionou as imagens que iriam ser incluídas em sua pauta de
assuntos criminais, apoiada em uma campanha publicitária de milhões
de reais.
Discurso é ferramenta de poder, como bem observa Foucault ao
analisar a dinâmica do discurso. Diz o filósofo francês que “em
toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada,
organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm
por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu
acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e terrível
materialidade” .
Ante o exposto, sem a pretensão de exaurir o tema, pretende-se no
artigo provocar a discussão sobre a produção levada ao ar no
programa semanal Fantástico da Rede Globo, cujas imagens, pela
contundência, mantiveram em estado de choque milhões de lares
brasileiros. E, ao comentar a produção de MV Bill, através das
lentes da Semiologia Jurídica, procurar-se-á destacar o discurso do
judiciário que, ao falhar na tutela dos moradores das favelas,
através de sua linguagem arcaica e obtusa afasta a justiça da
população desassistida que se transformam em joguetes ora do Estado
ora do crime organizado.