NOSSAS VISITAS |
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"Redentor" chama
Deus para nos salvar
Cláudio Torres fez um grande filme visionário e político
Fazer um filme, para quê? Para curtir o charme típico de diretor,
visor pendurado no pescoço, chapéu na cabeça, cara de gênio e olho
de lince, para ganhar aplausos na sala escura, para ganhar prêmio,
para sair nos Cadernos 2 da vida, para aparecer nas colunas sociais,
para ganhar o Oscar e papar as atrizes? Fazer cinema para quê? Para
ganhar dinheiro? Existem fórmulas mais seguras: fazer lobbies em
Brasília ou abrir uma loja de empadas.
Quando eu fazia cinema (ainda faço de certo modo, dirigindo a mim
mesmo nas performances na TV) havia uma aura sagrada nos filmes.
Fazíamos o primeiro filme como se fosse o último, com uma carga de
paixão e utopia que hoje não vejo mais. Queríamos iluminar a
"realidade brasileira", invisível ao sol, à luz do dia e que (ao
contrário da caverna de Platão) seria sintetizada no escuro do
cinema. E como a realidade era lida pela gramática oficial de
Hollywood, o Cinema Novo queria inventar uma linguagem que fosse
contra a sintaxe careta que mascara os dramas profundos da vida.
Odiávamos o "campo e contracampo", os "closes" bonitinhos, a luz
difusa e romântica, e até certos "travellings" podiam ser
"reacionários". O crítico Luc Moullet sentenciara e nós obedecíamos:
"A moral é uma questão de travellings". Nosso cinema, bom ou ruim,
era cheio de esperanças. Não estávamos apenas fazendo filmes;
contribuíamos para um "Panteon" da cultura brasileira, de modo a
expor o país oculto para os brasileiros. E muitas contradições
escondidas apareceram sim: a favela, a seca, o cangaço, a luta de
classes, a história antiga, os hábitos caretas da classe média, a
estupidez das elites.
No entanto, com a evolução dos meios de reprodução, o espelho do
país se ampliou como um "hubble" cultural e o mistério foi se
desfazendo. Muitas das velhas funções do cinema foram assumidas pela
TV e a tradição "francesa" dos cinéfilos e cineastas foi esquecida,
matando o cinema "de autor", de crítica, de redenção e
"conscientização".
A tecnologia avançou como nunca. E os filmes foram virando produtos
de prateleira, vendendo nas lojas de conveniência, em supermercados.
Claro que foi bom; não somos idiotas contra a invenção técnica. Mas,
para os "autores", os utópicos criadores que viam o filme como um
"objeto único", sagrado, isso foi também um trauma. Os filmes
ficaram mais "possíveis", mais "normais", comezinhos. Perdeu-se a
excepcionalidade de cada obra, a delícia narcísica de desvendar o
mundo, de desvendar suas relações dentro da tela. O cinema
brasileiro perdeu sua dimensão épica e ambiciosa.
Depois, veio o furacão Collor e exterminou a atividade. Ficamos
órfãos durante mais de 5 anos, até que na era-FHC o cinema renasce.
Mas sua ressurreição se dá na década de 90, com a globalização
liberal e o fim do socialismo. E com a década pós Guerra Fria, sumiu
a esperança do socialismo e de um mundo melhor, desejos entranhados
em nossa tradição de cinema.
Os diretores entraram numa vereda que se bifurcava: ou caímos no
oportunismo "de mercado" tipo "Oba, dane-se o mundo, quero minha
grana!" ou passamos a nos contentar com uma amostragem de dramas
episódicos, revelando apenas epifenômenos sem a antiga ambição da
totalidade. Por um lado, isso foi bom para amenizar o ideologismo
que nos cegava. Foi importante vermos de novo os aspectos óbvios da
vida que a utopia esmagava. A década de 90 tinha acabado com as
“grandes narrativas”, a chama de se chegar a uma conclusão
iluminadora. No mundo onde é impossível a revolução, cria-se uma
arte passiva. Mesmo os filmes mais corajosos, que denunciavam
aspectos terríveis do país não ousavam arriscar reflexões
generalizantes. Ficamos mais prudentes, mais "mercadológicos", menos
"artísticos" mais preocupados com o público. Também ninguém sabia
mais o que dizer do mundo, conformados e confortados pela falta de
saídas.
Essa imagem passiva e comportada de um neoliberalismo que "salvaria"
o mundo foi rompida pela queda das torres de NY. Osama relançou o
absurdo no Ocidente, fazendo cinema. Fez a paródia de um
filme-catástrofe. As torres caindo são as mais fortes cenas da
História do milênio. Além disso, ele fraturou nossas certezas e
abriu de novo o buraco do "que fazer?", o buraco do "por quê?", do
"onde?", do "que será de nós?". Estamos de novo diante do mistério,
do perigo, da busca de soluções para o mundo.
Escrevi tudo isso por causa do filme “Redentor”, de Cláudio Torres,
produzido pela Conspiração Filmes, o “cinema novo” de hoje.
Esse filme é uma oportuna retomada da boa tradição política e
teleológica. Trata-se de um furo no cinema que estamos produzindo
hoje, pois é de novo o desejo apaixonado de entender o país, de novo
diante do enigma, de novo um filme faminto de significado, um filme
se arriscando a sair do “faits divers”, do naturalismo psicológico e
alcançar uma reflexão crítica profunda. Lacan escreveu (me disseram)
que "contra o capitalismo só a santidade". "Redentor" junta as peças
perdidas de nosso quebra-cabeças social e convoca até o milagre,
criando um cinema visionário e operístico, chamando Deus para dentro
de nosso inferno tropical. Estamos de novo em busca de um milagre
brasileiro. A parte final do filme bordeja a obra prima, com um
grande "agon" operístico, um grande coro, um "Turandot"favelado
clamando por uma solução nem que seja divina para nosso desespero.
Não que o filme dê alguma resposta. Mas, sua imensa novidade é a
busca de "sentido". De novo, buscar o sentido será nossa missão,
entre homens-bomba e Bush ou aqui, dentro dessa crise entre utopia e
prudência que vive o governo de hoje.
"Redentor" busca uma redenção. E dá vontade de fazer cinema de novo,
para salvar o Brasil.
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