NOSSAS VISITAS |
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Nossos Dias
Melhores Nunca Virão?
Ando em crise, numa boa, nada de grave. Mas, ando em crise com o
tempo. Que estranho "presente" é este que vivemos hoje, correndo
sempre por nada, como se o tempo tivesse ficado mais rápido do que a
vida, como se nossos músculos, ossos e sangue estivessem correndo
atrás de um tempo mais rápido.
As utopias liberais do século 20 diziam que teríamos mais ócio, mais
paz com a tecnologia. Acontece que a tecnologia não está aí para
distribuir sossego, mas para incrementar competição e produtividade,
não só das empresas, mas a produtividade dos humanos, dos corpos.
Tudo sugere velocidade, urgência,
nossa vida está sempre aquém de alguma tarefa. A tecnologia nos
enfiou uma lógica produtiva de fábricas, fábricas vivas, chips,
pílulas para tudo.
Temos de funcionar, não de viver. Por que tudo tão rápido? Para
chegar aonde? A este mundo ridículo que nos oferecem, para morrermos
na busca da ilusão narcisista de que vivemos para gozar sem parar?
Mas gozar como? Nossa vida é uma ejaculação precoce.
Estamos todos gozando sem fruição, um
gozo sem prazer, quantitativo. Antes, tínhamos passado e futuro;
agora, tudo é um "enorme presente", na expressão de Norman Mailer. E
este "enorme presente" é reproduzido com perfeição técnica cada vez
maior, nos fazendo boiar num tempo parado, mas incessante, num
futuro que "não pára de não chegar".
Antes, tínhamos os velhos filmes em preto-e-branco, fora de foco, as
fotos amareladas, que nos davam a sensação de que o passado era
precário e o futuro seria luminoso. Nada. Nunca estaremos no futuro.
E, sem o sentido da passagem dos dias, da sucessibilidade de
momentos, de começo e fim, ficamos também sem presente, vamos
perdendo a noção de nosso desejo, que fica sem sossego, sem noite e
sem dia.
Estamos cada vez mais em trânsito,
como carros, somos celulares, somos circuitos sem pausa, e cada vez
mais nossa identidade vai sendo programada. O tempo é uma invenção
da produção. Não há tempo para os bichos. Se quisermos manhã, dia e
noite, temos de ir morar no mato.
Há alguns anos, eu vi um documentário chamado Tigrero, do cineasta
finlandês Mika Kaurismaki e do Jim Jarmusch sobre um filme que o
Samuel Fuller ia fazer no Brasil, em 1951. Ele veio, na época, e
filmou uma aldeia de índios no interior do Mato Grosso. A produção
não rolou e, em 92, Samuel Fuller, já com 83 anos, voltou à aldeia e
exibiu para os índios o material colorido de 50 anos atrás. E também
registrou, hoje, os
índios vendo seu passado na tela. Eles nunca tinham visto um filme e
o resultado é das coisas mais lindas e assustadoras que já vi.
Eu vi os índios descobrindo o tempo. Eles se viam crianças, viam
seus mortos, ainda vivos e dançando. Seus rostos viam um milagre. A
partir desse momento, eles passaram a ter passado e futuro. Foram
incluídos num decorrer, num "devir" que não havia. Hoje, esses
índios estão em trânsito entre algo que foram e algo que nunca
serão.
O tempo foi uma doença que passamos
para eles, como a gripe. E pior: as imagens de 50
anos é que pareciam mostrar o "presente" verdadeiro deles. Eram mais
naturais, mais selvagens, mais puros naquela época. Agora, de calção
e sandália, pareciam estar numa espécie de "passado" daquele
presente.
Algo decaiu, piorou, algo involuiu
neles.
Lembrando disso, outro dia, fui atrás
de velhos filmes de 8mm que meu pai rodou há 50 anos também.
Queria ver o meu passado, ver se havia ali alguma chave que
explicasse meu presente hoje, que prenunciasse minha identidade ou
denunciasse algo que perdi, ou que o Brasil perdeu... Em meio às
imagens trêmulas, riscadas, fora de foco, vi a precariedade de minha
pobre família de classe média, tentando exibir uma felicidade
familiar que até existia, mas precária, constrangida; e eu ali,
menino comprido feito um bambu
no vento, já denotando a insegurança que até hoje me alarma.
Minha crise de identidade já estava
traçada. E não eram imagens de um passado
bom que decaiu, como entre os índios. Era um presente atrasado,
aquém de si mesmo. A mesma impressão tive ao ver o filme famoso de
Orson Welles, It's All True, em que ele mostra o carnaval carioca de
1942 - únicas imagens em cores do País nessa década.
Pois bem, dava para ver, nos
corpinhos dançantes do carnaval sem som, uma medíocre animação
carioca, com pobres baianinhas em tímidos meneios, galãs fraquinhos
imitando Clark Gable, uma falta de saúde no ar, uma fragilidade
indefesa e ignorante daquele povinho iludido pelos burocratas da
capital. Dava para ver ali que, como no filme de minha família,
estavam aquém do presente deles, que já faltava muito naquele
passado.
Vendo filmes americanos dos anos 40, não sentimos falta de nada. Com
suas geladeiras brancas e telefones pretos, tudo já funcionava como
hoje. O "hoje" deles é apenas uma decorrência contínua daqueles
anos. Mudaram as formas, o corte das roupas, mas eles, no passado,
estavam à altura de sua época.
A Depressão econômica tinha passado,
como um grande trauma, e não aparecia como o nosso
subdesenvolvimento endêmico. Para os americanos, o passado estava de
acordo com sua época. Em 42, éramos carentes de alguma coisa que não
percebíamos.
Olhando nosso passado é que vemos
como somos atrasados no presente. Nos filmes brasileiros antigos,
parece que todos morreram sem conhecer seus melhores dias.
E nós, hoje, nesta infernal transição entre o atraso e uma
modernização que não chega nunca? Quando o Brasil vai crescer?
Quando cairão afinal os "juros" da vida? Chego a ter inveja das
multidões pobres do Islã: aboliram o tempo e vivem na eternidade de
seu atraso.
Aqui, sem futuro, vivemos nessa
ansiedade individualista medíocre, nesse narcisismo brega que nos
assola na moda, no amor, no sexo, nessa fome de aparecer para
existir.
Nosso atraso cria a utopia de que, um
dia, chegaremos a algo definitivo. Mas, ser subdesenvolvido não é
"não ter futuro"; é nunca estar no presente.
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