QUINTA PARTE

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  Roubar é um Prazer
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  As Pérolas Pescadas
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  O Mandacaru na
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  É um Mal não
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  Osama Acabou com
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NOSSAS VISITAS


 

 

               Arnaldo Jabor        

 

O Mandacaru na Sala de Jantar

Cansado de política, cronista busca a natureza

Ontem eu comprei um mandacaru. Isso mesmo. Sempre quis ter um cactus em casa, mas me diziam: “Dá azar...” E eu desistia. Mas ontem passei num florista quase em frente a meu prédio no Rio e perguntei: “Tem cactus?” Ele abriu um caminho entre samambaias e tinhorões e apontou-me o mandacaru. Fiquei fascinado pela planta. Não era um cactus qualquer; era um personagem do Nordeste, uma famosa planta brasileira. O leitor já viu um mandacaru? Esse deve ter um metro e sessenta, reto, com três braços abertos, uma pele verde-oliva entre plástico e couro-de-lagarto, aberto em gomos sinuosos e todo cravejado de pequenos espinhos. Em minha casa há um enorme quadro amarelo como um sol em contra-luz e eu coloquei-o ao lado, de modo a criar uma paisagem de caatinga na minha sala. Então, feliz com meu dia de jardineiro, resolvi escrever meu artigo semanal; mas fui tomado por um grande tédio.

Escrever o quê sobre essa paralisia histórica mundial que finge ser dinâmica, mas apenas roda no mesmo erro, como um aleijado caído no chão, girando em volta de si mesmo, entre Bush e Osama, entre Lula e tucanos, entre rinhas de galo e Marta chorando, Garotinhos, Rosinhas, irrelevâncias políticas regressistas?

Do fundo da sala, meu mandacaru se postava como uma sentinela, ali, junto ao quadro ensolarado de Thereza Simões. E ele me despertou a fome de alguma coisa permanente, que viajasse no tempo dos milênios, alguma coisa que fosse essencial, nesse mundo caindo em epilepsia histórica. E resolvi escrever sobre ele.

Fixei-me no mandacaru, aproximando-me como um zoom. Ali estava ele, há milhões e milhões de anos, imóvel, fora do tempo e da historia, um observador mudo. Olhei bem a forma do mandacaru. E sua visão foi me dando um grande alivio, um prazer de estar em contato com um filho da natureza como eu, companheiros há bilhões de anos, numa solidariedade discreta, como um guardião me protegendo. Cheguei mais perto, passando a mão em sua pele lisa e dura como o dorso de dragão, crivado de espinhos que palpei delicadamente, como a um bicho manso, mas que pode morder de repente. Minha mão tremia neste contato solitário entre nós dois, a sós, de madrugada no Rio, chovendo lá fora, numa conjunção quase amorosa, ele quieto e dócil e eu curioso como um macaco diante do mistério. Eu temia seu silencio. Ele é um individuo vivo, sim, tanto que cresce, floresce quando vem chuva no sertão, tem cardos para o mundo perigoso, mas não toma a iniciativa. Só espera. Percebo que nele, tudo tem uma razão milenar. Ele é fruto de razões, esculpido pela misteriosa necessidade de existir. Vejo que a historia da natureza está toda ali contada entre seus gomos e espinhos. Quantos milênios se incorporaram na sua vontade de viver? O verde escuro tem uma razão, as volutas de seu corpo, seus braços em cruz, apelando para os ares, tudo é um relato cifrado para mim, narrando os eventos que passaram por milhões de séculos.

Ao homem que m’o vendeu, perguntei se tinha de regar. Não, ele não precisa de água, nem de nada. O meu mandacaru não come nem bebe. Só vive. “Por quê” - penso, metafísico. Para quê? Para nada, nos ensinou Darwin, abrindo o caminho do “alegre saber” desesperançado para a filosofia. Nada. Ele é elegante, frugal e forte como um sertanejo - a comparação inevitável. O mandacaru é um sertanejo de braços abertos diante do nada, sob o sol, existindo em pleno vazio - como nós...Só que ele não tem ilusões de sentido, coisa de humanos. Ele é uma lição sobre nosso destino, uma lição incompreensível, um segredo insuportável que não podemos encarar. Mas, se ele está fora da historia – me pergunto - por que então os espinhos? Ele se defende de quê, há milhões de anos? Ele não se move, mas sabe do movimento do mundo. O mandacaru está sempre pronto para a ação. Ele não ataca, mas contra-ataca os bichos que tentaram mascá-lo, dentes primitivos que interrompiam a ordem que seus genes lhe davam: “Exista! Viva!”

Por isso ele está sempre “en garde”, com bracinhos curtos, como um soldado, um espadachim. Ele não venta, não verga, só espera. Ele não serve para nada, alem de existir. Não, não; suas flores servem sim, anunciando chuvas. Seus frutinhos são insípidos e ele só serve de comida em ultimo caso, humilhado em sua pose meio-humana, sendo esquartejado, cadáver verde, raspado de espinhos para alimentar os bois na seca.

Mas, aqui, na minha sala ele está longe de seu deserto, ele está sozinho, parece mais um retirante, desambientado na presença dos vasos de louças, da mesa de mármore, dos livros, sofás.

Que faz esse retirante, esse pau-de-arara aqui? Ele é um intruso, mas não parece constrangido em sua dignidade agreste. Ao contrario, suas presença aviva tudo à sua volta por diferença, tudo fica mais nítido, porque ele parece coisa, se disfarça até de coisa, mas está vivo. Vivo. E´ isso que me assombra, à noite, quando chego e o vejo em sua discreta vigília, me esperando. Dou-lhe um “olá” mudo e gosto que ele esteja ali, amigo sem nada pedir. A sua volta abre-se um Nordeste em minha sala, lembrança de vaqueiros, cangaço, Lampião e Graciliano. Ele me re-liga com uma natureza sem exuberâncias, sem românticas esperanças ecológicas, mas uma natureza viril, discreta, me trazendo um sentimento de coragem. E eu não estou mais sozinho. Ele é o Sr. “Cereus Jamacaru” e eu o Arnaldo. Aprendo com ele a resistir aos ataques que têm me ferido pela a incompreensão do amor virado em ódio, com ele aprendo que não há motivo algum para a esperança, nem para a salvação, mas que viver é uma ordem que obedecemos e que pode ser um prazer silencioso como ele certamente tem, debaixo do sol da caatinga ou no canto de minha sala. De noite, durmo e sei que há dois viventes em casa. Eu e ele. Não sei até quando, pois ele talvez me sobreviva e fique para sempre em minha casa, esperando alguém que o leve para um destino novo e que talvez o assassine.

 

ACESSO RÁPIDO


 

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