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NOSSAS VISITAS


 

 

Zé Ramalho

Carne de Pescoço

                                     Zé Ramalho

 

Não há muito o que falar a respeito dessa linhas, a não ser o seu conteúdo musical e matemático mais do que científico e profano, ao nível de se arvorarem nas ignorâncias que se desafiam em suas margens e misteriosos limites de invasões, transas e progressos que socorrem o risco de se arderem no fogo místico do coletivo consumo. No mais é exercício. Vontade de tocar e cantar alguns sinais que prosseguem na sua determinação mecânica e já não mui-desconhecida... Alguns deles estraçalham-se pelos espaços incontidos e dedos nervosos  naquela intuição que se move sob o carbono progressivo dos seus traços e avanços.  existe o infra,
existe o ultra. Todo corpo em movimento produz uma vibração
um som perceptível ou não ao ouvido humano.
A primeira coisa que se moveu,
o primeiro sopro que se inflou,
o despertar do primeiro olho que se abriu
já produziu um som
esse agente diretamente ligado ao princípio
límpido dos artistas que criam,
músicos principalmente,
artistas do povo naturalmente.

A sombra e a luz que movem os organismos adentram-se nos estados biológicos e imperceptíveis da matéria, atuando como anjos ou demônios nos comandos elétricos do cérebro... Correm e deitam-se num dispor intrínseco com a ânima / fogo-fátuo / corpo celeste / vulto de luz.

As espécies se devoram num sublime confronto com a realidade desumana. O desafio energético das substâncias que movem os cálculos, encontram-se frios e temerosos ante a decadência de Marx.

O apego à terra é um estranho ninho, onde a gente sabe que vai "sartar" e porque não passar a esperar os momentos dentro de um maracanã vazio, comendo pipocas e dando uma bola num malandro cigarro.

Os cintos de segurança atestam a implacável sentença de Newton.

O mistério do magneto central (o sol) ante os corpos em movimento. As energias que os comandam e a liberdade voando junto com elas. O alimento autofágico que a luz desprende acende mais ainda o seu segredo íntimo. A fotossíntese. Bolero amerengado e aquecido... vitamina de ritmos... agitação e revolução do frevo, movimentos e pulos nessa ação biológica de gastar os potenciais acumulados que se deslocam em comandos de força-espaço-momento e som, causas desse acionamento incontrolável que a raça humana pratica e se desafia no seu exercí-cio diário de querer ver Deus.

Confundem-se religiões. Testamentos viram-se nervosos. A grande fé já não basta só pelas promessas de se renascer em pergaminhos mal interpretados pelos doutores que os puderam ler e reter os grandes signos, aqueles sinais que evocam forças estranhas e supremas, entidades e energias invisíveis.

nesse para-raios de cometas,
nesse silenciar dos motores
nesse balbuciar dos cimentos,
nessa catedral dos infernos,
nesses temores do homem
que se refugiaram sob as asas
de um pássaro, desses que voam
sem se despencar dos edifícios

não adianta fechar minha boca, meus olhos falam e meu cabelo grita.

é inútil taparem meus olhos,
minha mão vê
e minha pele recita

impossível selar meus ouvidos, minhas pernas ouvem
e minha coluna insista.

debalde virem bloquear meu nariz cotovelos expiram
e a respiração lhe excita

tempo perdido matar um segredo o corpo renasce
e portanto reflita


Alguma coisa irá acontecer e alegrar os povos que necessitam de algo mais forte que a sua fé. Saber dessa luz que repousa e enfurece o seu espaço físico-dimensão-comprimento-largura.

A necessidade de se lançar uma força otimista sufoca o realismo explorado pelos visionários da época, qualquer que seja a história que mova o espaço do homem, ele estará sempre caminhando ou apenas sendo levado pelas trilhas-lâminas do tempo como uma folha no ar, transfigurando assim todo o equilíbrio do universo.

hoje quero sentir-me
quando deitar-me nas pedras
como um lagarto que dorme
na incoerência das eras

sentar-me-ei entre feras
e sentirei no seu hálito
a solução das esperas
e um sofrimento esquálido

adormecendo as uvas
reconstruindo em favas,
aconteceram as chuvas,
redespertaram em lavas,

compareceram em chamas
estrangularam as falas
carbonizaram miúdos
perpetuaram-se em galas

filhos de freud,
filhos de marx,
filhos de brecht,
filhos de bach,

filhos do câncer,
filhos de getúlio,
filhos do carbono,
filhos de lampião.

A origem principal é um zero absoluto. Ninguém conhece seus antepassados em milênios de anos transcorridos e procriando a espécie, cálculo distante pro nosso pensamento, pequeno relógio do tempo solar. Só de umas gerações para cá é que se tenta uma proporção de antecedentes que nos trouxeram para cá (o mundo).

Ascendentes e descendentes às sucessões biológicas se processam pelo raciocínio lógico de um filho que veio de um pai, que por sua vez também veio do seu pai, do seu avô, bisavó.., e assim por diante ou para trás.

Isso é o atavismo do AVOHAI, palavra mágica que traduz e evoca nossos ante-passados em sua formação cósmica. Uma religião própria e independente das fés dogmáticas. O aconchego da carne com as sementes que provocaram as múltiplas possibilidades de espalhar o segredo de cada espécie viva.

AVÔHAI

AVÔ & PAI

No fim nada se explica. Tudo é mistério. Lúdico motivo para se descobrir as passagens para todas as dimensões que se acumulam na mente, no olho e na luz que ele filtra, no profundo exercício do sonho inexplicável do homem. A transfiguração das consequências que modificam-se nessasontes de energia, que trouxeram tão profundamente mais fórmulas instigantes à aproximação do homem com a natureza. Peleja da ciência com o misticismo, idéia inútil pela sua terrível relatividade que encerra em cada paralela do infinito.

se fosse fácil, todo mundo era
se fosse muito, todo mundo tinha.
se fosse raso, ninguém se afogava.
se fosse perto, todo mundo vinha.

se fosse graça, todo mundo ria.
se fosse frio, ninguém se queimava
se fosse claro, todo mundo via.
se fosse limpo, ninguém se sujava.

se fosse farto, todos satisfeitos.
se fosse largo, tudo acomodava.
se fosse hoje, todo mundo ontem.
se fosse tudo, nada aqui restava.

se fosse homem, junto com mulher
se cada bicho, fosse como vou.
se fosse tudo claro pensamento
nesse momento, nada se criou.

A função definitiva é uma serpente brilhante dentro de um cesto de maçãs podres. A mulher, enfim, como um doce veneno, esfinge de garras de bronze, felina mãe-natureza, parto de todos os organismos que se movem. Preço incomparável da sua beleza insólita.
 
Porta Secreta
Zé Ramalho

Vou te passar um motivo que te faça como fez em mim, a nossa alegria alegria. O grande sopro que veio pelo mel de todos os segredos, pelo som de todos os brinquedos, um canto leve que leve a gente para outro lugar transparente, que em tudo reluz a boa e forte imagem que chega.

Nesses dias que temos pela frente, à qualquer hora um "napalm" pode lhe acertar.

Você pode esbarrar numa esquina com a sorte que lhe procura desde que você nasceu, e você pode procurar o planeta inteiro por ela (a sorte) e não encontrá-la.

Ela pode estar lhe procurando em Marte ou em Saturno e não sabe que você está aqui na Terra. Portanto, quero ir para Vênus ou mesmo quem sabe, me plantar e enraizar meus pés no Brejo-do-Cruz, lugar cercado de luz. Amigo feto da minha infância.

uma calçada cheia de lixo,
refugos que vou atirando para trás
por cima dos ombros,
chegarei um tempo, minha gente,
nessa minha viagem para trás,
onde falarei com velhinhos que estavam
nos rubros campos de batalha
e eles me disseram que o súbito silêncio...
era a Voz de Deus.

Para saber da passagem e qual a ponte a me atravessar, que próxima vinda me chega no corte das atrações em dia?

Um magneto espesso, um solenóide aparente, os átomos bulindo, como eu diria: no gosto do fino cálculo.

Descer da solidão, é se jogar no teu abismo. Naquela sensação de tiro e queda, um pulo no carnaval de cada um. A sensação das procuras e dos desejos. O saciar qualquer vontade, qualquer coisa que provoque fagias no teu denso mistério de homem. Teu curioso olho em flerte com o desafio.

por detrás das montanhas,
quando vens cada ciclo,
me estremeço de veias,
fico mudo de pleno
ano-luz amarela
que derrete os minerais,
que amolece os animais
curandeira das trevas,
pastorinha do cais,
que recebo em teus raios
no alimento das sombras
que chegaram relâmpagos
entre olhos de pedras
cavalgaram teu dorso
nos umbigos da terra
nos rochedos que rompem
ante um raio mais forte,
os sons das guitarras,
faíscas da vida.

Um torvelinho louco que nos levou em pouco tempo para o ventre dos abismos, nunca verá o brilho que engana os olhares curiosos dos nossos inimigos. E o milagre dos venenos que trouxeram todo o ardor do fogo nos ouvindo e nos livrando do que antes fora um barco salvador.

os portões do éden vão se abrir
e os quatro cavaleiros armados
de carabinas e armaduras medievais
vão invadir os templos sagrados
e espalharão sede nas campinas
nem as ervas sobreviverão,
por mais daninhas que sejam,
nem os peixes e nem os caçotes
suportarão o peso das águas.
mas as serpentes tentarão reagir,
lançando fogo sobre o metal vil,
laçando bichos já estrangulados
pela ação corrosiva dessa erosão,
os holofotes do pequeno dragão,
um fusco-pálido mais brancoso,
poderá iluminar no céu.
um para-quedas com uma cruz vermelha
e os ossos brancos do pirata negro
na abordagem da ilha do sossego.

Qual é a mais estranha e distante percepção que uma projeção humana pode ser lançada no universo do seu raciocínio lógico e ilógico?

O desconhecido sempre existirá. Porque o vocábulo exprime exatamente o que não pode ser definido como um conhecimento tátil ou teórico de alguma coisa dura, etérea ou regiões avançáveis. O sentido literal não é absoluto no "conhecido" e no "desconhecido' Maniqueísmo valor aplicado. As luzes acendem-se e apagam-se no cérebro do homem, deixando-o fantoche das suas emoções, e comandos da sua vontade.

esteja eu perto ou longe,
mantenha sempre nos olhos
a minha imagem que eu me tranformo
em olhar e em coração para embalar
essa lembrança
e desprender suas luzes na madrugada
todos que foram empalhados,
não mais estaremos calados
como bichos alados que voam
no silêncio da sua própria solidão,
de quem souber imantar
a vela mais que fulgas
o tempo para na curva e manda um beijo
para a filha da chuva
correio da noite
vai amanhecer
e a manga da foice,
se clara se vê.
se foi ante-ontem,
espero que contem
quem foi sem morrer

tua porta, tão larga
vive aberta em silêncio,
pois só treme nos gonzos
quando rangem os seus dentes.

mas quem for lá cruzá-la,
vai viver seus momentos,
pois é lá que habitam
todos os sexos dos anjos
e os chocalhos da cobra
no olhar do sertão

Essa porta tem um ferro transparente como seda e uma rigidez tão sólida quanto a inocência das crianças.

Ela vem de outros movimentos, de outros murmúrios, de outros paradigmas que não esses que são corrompidos desde que se coagularam nessa dimensão escabrosa do novo pensamento mundial.

A cabeça. Como é bela. Os olhos são as janelas por onde essa coisa esquisita que se diz energia, espia o que se passa aí fora numa determinada partícula que flutua no universo.

A Terceira Lâmina
Zé Ramalho

Entre as imagens movem-se as lâminas. E as cabeças não foram todas cortadas. O objetivo imóvel, espera que sua inércia morra de tédio com o sabor de águas selvagens, domadas, imaculadas e brancas nos seus tecidos brilhantes.

Cavalos marinhos sob um pasto atômico às costas do sertão magro... ventas de fogo sobre o mar. Estátuas de velhos amigos acenam para o enigma do meu horizonte. A contemplação do velho instantâneo dos raios que iluminam o preto.

Caminho nessa direção.

a cabeça do homem,
na garganta do tempo,
enforcando o silêncio
na fundura do poço.

encolhendo o pescoço
à altura do omobro,
há de ver o assombro
e a brancura do osso

as serpentes no fosso
purificam a água.
sua cor verde-musgo
entre os dentes que brilham
poderosas escamas
nas correntes que trilham.

aspirando o seu pólen,
borboletas antigas
enroscadas no olho
das abelhas perdidas.

ali caem do vôo
e endurecem as asas,
apedrejam as casas,
e se entumescem num beijo.

estraçalham o queijo
e a comida dos ratos,
e entre pêlos de gato
e a quentura do leito,

as urtigas no peito
atiraram na rua
os sobejos da came.
pelos cantos da boca
elas bebem do vinho,
tomam conta do mel,
envolvidas num véu
de textura estranha.
sua força assanha,
sua perna é crua,
seca fonte de rio,
sete gatas no cio
sem ser minhas nem tuas.
uma perde, outras, nuas,
correm soltas no vento,
penduradas no tempo.
as cabeças do homem
em quiçá horizontes,
em silêncios e só?

profanar!
um jazigo encoberto de cabelos brancos
ganhar a batalha atacando nos flancos,
perder a memória prá não se lembrar.
desprender!
a membrana de aço que não se executa.
fugir ou tentar a sentença computa,
de noite é mais fácil de se esconder.

emitir!
um barulho maior que a garganta do mundo
calar o silêncio deter o segundo,
abrir as janelas prá não se ouvir.

é pior!
burilar os tendões que a cabeça procura.
o peso da noite é uma dama impura,
escorrendo em cima do talho maior.

abajur!
quebra-luz, meia-noite, e a cidade festeja.
o sino da noite no fundo da igreja.
no pé do carrasco a lâmina cai.

a lâmina olha
brilham no corte seus fios de átomos.
preço que dá mais vida
com mares e ventania,
com a fome das estepes
e com um pedaço do olho.

suspendendo a ponte,
há um sítio lá for a
com os cacos de vidro.
e à velocidade incrível
dos que nadam na febre,
explodindo em conchas
com o fogo das madeiras.

com as luzes do povo
num jardim de delícias
e escutando as canções,
dos poetas na rua.
e a mulher da avenida
clareando a coruja
com os homens acesos
em chamas na pedreira.

recortando em tudo,
condenando os caminhos,
escrevendo sozinho
num processo agudo,
alisando o veludo
na barriga da sede
e escrever na parede
tudo em que desiludo.

se eu cantar mais ainda,
me lembrando dos mudos
onde ouviram silêncios.
escutar universos
avistar a estrela
abraçar a amada
e transar seu amor
onde poucos caminham.

chegarás como a foice,
como um raio...
desprendendo vertigens
poderosas descargas,
apagando o silêncio
que, no ventre das nuvens,
repicou, refletiu
por um grande mistério
que serás concebida.

e a final das cacimbas
nos pedrejos do olho,
chegarás algum dia
com pedaços do vento.
pela porta das bocas
tu dirás, como um guia,
que a filha das luzes
é o cabelo do homem.

pois se é ela que fere,
que se lança na vida,
que repele a comida
e que sabe as canções
porque vem como arma,
como coisa que corta,
pois é garra afiada
mais que a face do medo

e essa lâmina brilha,
mostra-se à escuridão
quase em todo segredo
sempre é ela que fere,
me jogando mais vida,
me provoca num verso
que não tem mais saída,
que me traz a bebida
no cristal do seu olho
e espiando nas ondas
os grandes movimentos.

do seu fio mais limpo,
pingará uma gota
na garganta do tempo
que desprende a paixão,
que causa ameaças
com impactos de ariete
e retomada dos muros
na grande derrubada.

e depois que a febre
retirar a serpente,
minha boca dormente
de chamar pela tua
que, infeliz, continua
pelos sonhos da gente,
a passar livremente
pelos cantos da rua.

e é ela que fere
com os olhos da febre,
com os cacos do vidro,
com os piches do muro,
com todas as faíscas
e metais mais brilhantes
e porás nos meus olhos
um descanso incrível.
serás a chegada
que virá me acalmar.
uma ponte serena
a me atravessar.

nessa dor congelada
como um grande tesouro,
nossas faces geladas,
envoltas em brilhos,
profundas belezas
na fúria incontida
poço das paixões
com as fomes do homem,
com o samba nas cores,
com os olhos em chamas
na força da fogueira
e o pulsar da madeira
no quasar do sertão.

perdoem a lâmina
ela que fere o poeta,
mas ele é que pediu
para ser o corte.
ele que feriu.
vindo para o norte,
ele preferiu
vida pela morte.
ele conseguiu
ser alvo do corte.

Bomba de estrelas
Zé Ramalho

Dedicado a Jorge Mautner

nem toda nota é o tom,
nem toda luz é acesa,
nem todo belo é beleza,
nem toda pele é vison.
nem toda bala é bom-bom,
nem todo gato é do mato,
nem todo quieto é pacato,
nem todo mal é varrido.
nem todo preso é punido,
nem todo queijo é do rato.

nem toda estrada é caminho,
nem todo trilho é do trem,
nem todo longe é além,
nem toda ponta é espinho,
nem todo beijo é carinho,
nem todo talho é um corte,
nem toda estrela é do norte,
nem todo ruim é do mal.
nem todo ponto é o final,
nem todo fim é a morte.

nem todo rei é bondoso,
nem todo rico é feliz,
nem todo chão é país,
nem todo sangue é honroso.
nem todo grande é famoso,
nem todo sonho é visão,
nem todo pique é ação,
nem todo mundo é planeta.
nem toda pena é caneta,
nem todo certo é razão,

nem todo claro é clareza,
nem todo brilho é da luz,
nem todo cristo é o da cruz,
nem todo crime é defesa.
nem todo truque é proeza,
nem todo alto é altura,
nem todo quente é quentura,
nem todo prato é bandeja.
nem toda luta é peleja,
nem toda noite é escura.

nem todo coxo é perneta,
nem todo doido é demente,
nem todo grão é semente,
nem toda cara é careta.
nem toda mala é maleta,
nem todo verme é minhoca,
nem todo milho é pipoca,
nem todo santo é catimba.
nem todo poço é cacimba,
nem toda fala é fofoca.

nem todo tiro é de bala,
nem toda cobra é serpente,
nem todo sol é poente,
nem toda boca é a que fala.
nem todo quarto é senzala,
nem toda conta é exata.
nem todo couro é chibata,
nem todo peso é medido.
nem todo grito é sentido,
nem todo verde é o da mata.

nem toda faca é punhal,
nem todo corte é ferida,
nem toda guerra é vencida,
nem todo vago é banal.
nem todo gênio é o tal,
nem todo velho é idoso,
nem todo dengo é manhoso,
nem toda conta é correta.
nem toda linha é uma reta,
nem todo fraco é medroso.

nem todo fogo é fumaça,
nem todo fumo é tabaco,
nem todo furo é buraco,
nem todo pátio é praça.
nem todo dia é de graça,
nem todo peixe é do rio,
nem todo são é sadio,
nem toda cabeça pensa.
nem todo crime compensa,
nem todo gelo é do frio.

nem toda horta é canteiro,
nem todo monte é colina,
nem toda viola afina,
nem todo galho é poleiro.
nem todo rock é santeiro,
nem todo homem é tanto,
nem todo véu é um manto,
nem todo olho é vazado.
nem todo terço é rezado,
nem todo choro é um pranto.

nem toda goma é chiclete,
nem todo baco é bacana,
nem toda gente se engana,
nem toda vamp é vedete.
nem toda mão se intromete,
nem todo caso é paixão,
nem todo leque é pavão,
nem toda cerca separa.
nem todo peso é a tara,
nem toda vara é condão.

nem todo pó é poeira,
nem todo vento é soprado,
nem todo leite é coalhado,
nem todo filtro é peneira.
nem toda folha é parreira,
nem todo bicho é papão,
nem todo aperto é de mão,
nem toda raça é humana.
nem toda mente é insana,
nem todo ente é irmão.

nem todo grão é semente,
nem todo barco é vapor,
nem todo grito é pavor,
nem todo sol é nascente.
nem todo elo é corrente,
nem todo filho tem pai,
nem tudo que sobe cai,
nem todo verso tem rima.
nem toda matéria é prima,
nem tudo que entra sai.
 
Cantador atômico
Zé Ramalho

a missão de um cantador
é de andar pelas estradas,
levando a sua função
nas rimas improvisadas.
um menestrel dos abismos,
das regiões assombradas,
contra a forca negativa
que arrasta a quem quer cair.
um rei começa a rugir
contra essa besta nociva,
que habita em carne viva
dentro de nós com furor,
mas existe um defensor
para defender o crente.
some o leão com a semente
e tens o destruidor

prá falar de um cantador
não bastam só teorias,
nem medos nem fantasias
exprimem o seu valor.
ele não é um doutor,
e nem mesmo tem posição.
mas em qualquer reunião,
quando canta o seu repente,
o povo fica contente
com a sua disposição.

diz ele tantas histórias,
que prende com seu carisma
um povo que nunca cisma
com sua lutas inglórias,
e tendo essas memórias,
porteiras por desvendar,
um pouco vai concentrar
nas celas do seu juízo,
e o fogo do improviso
começa logo a queimar.

gozam de mim nessa vida,
sabem dizer meu valor.
cada pessoa sabida
conhece o cantador.
meu desejo bate firme
nos dentes da minha dor.
um passo e cai na garganta.
e canta com o cantador.

o cantador é serpente,
é tocador de alaúde,
é sangrador de açude,
é um buraco de pena.

um pranto de Madalena,
a cova dos gaviões,
o entoar da novena
o quengo dos ermitões
o brilho dos aviões,
uma centelha pequena,
um canto mais que a centena
de anos pro meu amor.

o outro lado da dor
estranhamente define.
e quero mais que termine
o canto mais que adianta
um passo e cai na garganta
e canta com o cantador.

o verso vem mais cruel
em busca do novo mundo.
em todo olho profundo
há uns que olham pro céu.
em todos rasgou-se o véu.
das teias para mirar
estrelas a cintilar,
na frente dos que deliram,
um pouco dos que acreditam
irão se perpetuar.

esse teu dente de ouro
penduro no meu colar.
teu desejo de mouro
do peito quero sangrar.

essa corrente que prende
teus movimentos no ar,
tem elos de energia
difíceis de se quebrar.

pelejar é lutar, ir adiante,
saber o que puder enfrentar,
fazer motivo de pique
de tudo que se conhece.
do pouco que não se sabe,
fazer motivo e encarar
a própria resistência que vem
acima de todas as coisas.
disputar sem tirania
o desconhecer conquistável,
leal, belo e implacável.

são dez dedos pros anéis,
cem cabeças prá pensar
num lugar prá se viver
num gatilho prá puxar.

meu sorriso pelo cano
escorrendo feito mel.
por enquanto, vou passando
e estendendo o meu chapéu.

essa amarga mistura
de vinho branco com fel,
dão passarinhos voando
nas cordilheiras do céu.
e tu, que tens o repente
na hora de me falar,
deixa de novo o sol quente
por dentro te atravessar.

em vez de passarinhos,
quero aviões agarrar
dentro de cada gaiola.
esse passo foi a escola pois
escolhi a minha cela
quero ficar dentro dela
preso na minha viola

e ao invés de arames doidos,
corpos esfiapados,
quero dez cordas bem quentes
intermitentes a tocar.

quero dez cordas gentis,
desejos de amor farpado,
assombros de ver a noite
em sons haver enjaulado.

o que tem cara de mito,
não poderá com a dor.
e o que tem sonho de verde,
não saberá qual a cor

que sangra,
que morde
e que mexe.
responda logo e se avexe,
não prenda o cantador.

não verei
um trovão que não ribombe,
um riacho que não desça declínios,
um rio que não tenha caminhos,
piranhas viverem em alto mar.

voar num tapete sem motor
nas calotas polares não ter frio,
dos caminhos não temer o seu início,
dos vulcões não sentir o seu calor.

porém o amor
não mais o vulgo,
não mais o rei,
não mais aquilo tudo que eu sei.
já não me sinto mais um deus,
apenas teço com os dedos meus.

a unidade que recebo do sertão
é uma constelação
bela e malassombrada,
desabitada do olho do meio dia,
distante da ironia
do homem da madrugada,
é aumentado por essa recepção

que bate no coração
no couro da minha
amada desabrigada,
no rosto da ironia.
um terço da agonia
entrando na madrugada
e quase nada
ficasse na semelhança
que batizasse a criança
que batucou a cilada,
admirada, estava ela de dia
e quase nada seria
se não se fôsse acalmada
era de noite, e a tristeza
desafiou a solidão
e a peleja inodora,
interior do baião,
atravessou a fronteira
meridiano grotão.
no gado limpo de peste,
interior do sertão
explodem fogos de amigos
incertos como a canção.
quando é bom tempo eles vêm
quando é mal tempo eles vão

sabedoria do povo
em forma de procissão.
e o entoar da novena
em pratos de comunhão.
uma promessa que falta
um companheiro divino,
um tempo tão pequenino
para viver e ficar

um tudo tão magoado,
um povo tão violado,
erupção de crianças,

uma prece pela busca,
uma treva que ofusca,
uns olhos de cão danado,
os sonhos do condenado,
as barras de se viver.

uns olhos são para ver
as contundências do mundo.
um sonho final e profundo
em tudo que se mexeu,
em tudo que se moveu,
as aparências enganam
as mesmas que desenganam.
a cada uma quer ver
os olhos do moribundo
do caçador vagabundo,
que viu e não soube ver.

se em terra de cego
quem tem um olho é rei,
imagine quem tem os dois.
é muito quadro para uma só parede,
muita cabeça para um só chapéu.
é muita tinta para um só pincel,
é pouca água para muita sede.

é muita rede para pouco peixe,
muito veneno para se matar.
muitos pedidos para que se deixe,
muitos humanos a proliferar.

muita cachaça para pouco leite,
muito deleite para pouca dor.
é muito feio para ser enfeite,
muito defeito para ser amor.

Cordel e aboio
Zé Ramalho

Mas o negócio é o seguinte: O que eu quero dizer é que a respeito dessa cultura de cordel tão abordada e tão mal interpretada pelo pessoal que estuda, teoriza e se apóia nas afirmações literárias e retóricas da coisa, principalmente nesse final de século XX, quando a linguagem poética passa as ser uma coisa já raríssima de conter elementos irrevogáveis, elementos indiscutíveis, mesmo porque hoje é um lance de muito intelectualismo, aprofundamento, desenvolvimento de linguagem, de idéias, de estudos profundos, palavras pouco usadas e que têm-se que recorrer ao dicionário para compreendê-las e que não fazem parte do linguajar do povo em geral.

Os escritores de cordel, os poetas de cordel, os violeiros, os repentistas, são as pessoas que contêm assim o dom de um oráculo, de uma manifestação insólita.., vem de longe, e nenhum estudo por mais específico que seja, por mais especulado que seja, nunca a origem da fonte do improviso ou do repente será explicada, porque é um dom. Um dom divino, um dom sagrado mesmo, e que poucos possuem.

Mediante essa fase da humanidade, da tecnologia e do homem, ele contempla a si próprio. Um ser vivente fantástico que tem essa cabeça-poder de conseguir transformar as coisas. O gás e a matéria, alteram-se pela sua ação, movimento das forças que ele criou. Mas um trovão é indomável e pleno no seu rugido de éter e luz.

Que cavaleiro destemido estará conduzindo essa carruagem robombante de faíscas? Eu queria vê-lo com seus raios esplendorosos e rápidos.

O homem, às vezes, se queima no que ele próprio cria. E o cantador diante de tudo isso, de toda essa tecnologia, expõe principalmente a natureza, que é a força-mãe de todos os símbolos e tempos. Depois disso, ninguém explica mais nada.

E o cantador poeta do povo coloca tudo isso reconhecendo todo esse talento, esse valor de criação e anula-os de uma maneira muito eficaz colocando-os diante da natureza. Um grande embolador paraibano (Beija-flor) resumiu tudo isso que eu queria dizer num verso simples e fulminante:

o homem fez um motor
um rádio e televisão
fabricou um avião
obra de tanto valor
o homem fez um motor
prá correr nas profundezas
fez uma cama e um mesa
um revolver e um faca
morre e não faz uma jaca
que é fruto da natureza

O poeta e repentista Zé Vicente da Paraíba também reivindicou em seus versos o supremo poder da natureza diante do homem.

a abelha por Deus foi amestrada
sem haver um processo bioquímico
até hoje na houve nenhum químico
pra fazer a ciência dizer nada
o buraco pequeno da entrada
facilita a passagem com franqueza
uma é sentinela de defesa
e as outras se espalham no vergel
sem turbina e sem tacho fazem mel
quanto é grande o autor da natureza

O aboio vem do boi

É a relação entre o homem e o animal, domado com amor e sabedoria.

Vendo assim a princípio, sabe-se que o aboio é ação do sopro forte e melodioso daquela pessoa, do vaqueiro nordestino quando está tangendo um gado. Não importa se o gado é propriedade de algum coronel latifundiário. O gado é a sua família. Compromisso de amor pelos bichos que a natureza manifesta através daquele homem com os animais. Mansos, bonitos e sensíveis à essa estranha relação percebida apenas pelo bicho e pelo homem: o vaqueiro.

Guerreiro encouraçado.

Cavalgando nas caatingas em sua montaria também encouraçada, e resgatando as cabeças que se extraviam nos densos e espinhosos tabuleiros das caatingas nordestinas.

São pessoas humildes, corajosas, de um digna subserviência que os fazem donos de uma felicidade autêntica, desconhecida pelos que vivem longe da natureza.

Quando ele está tangendo o gado, leva a mão no ouvido, enche o peito e solta um grito-canto à palo seco quase gutural.:

Eh Oh vaca mansa;
Eh vida de gado;
Oh mansinho vai;
Oh vaca braba!

Partindo disso, essas expressões induzem o vaqueiro a cantar para aqueles animais que ele vai levando, tangendo-os como se fossem crianças.

Ele canta um possível acalanto acalmando o gado como se fossem seus filhos. Ele conhece cada cabeça do gado para quem trabalha. Tem um nome para cada uma, delas que atendem (e entendem) seu chamado passivas e obedientes.

O que urn vaqueiro canta, é a sua alegria motivada pela despreocupação dos pro-blemas urbanos. Coisas que não interessam a eles pela própria função que desempenham. Daí a sua felicidade.

A vaqueijada é o seu grande momento. Sua grande festa. A mulher é o sentimento, a prenda maior. A vaqueijada representa um teste de argúcia e habilidade, coragem e precisão. A derrubada do gado, a poeira que sobe do chão, o enrolar da cauda do garrote nos dedos de ferro do seu cavaleiro. Relação mais forte ainda desses amigos inseparáveis. Por isso é que o gado o respeita. E ele sofre sem dor essa prova sadia que revela o equilíbrio do vaqueiro ante o poder do animal, mesmo que se arriscando a quebrar uma perna ou uni braço, sorrindo do mesmo jeito.

O vaqueiro improvisa quando abóia em sextilhas que correspondem a versos de seis linhas com sete sílabas tônicas em cada uma delas.

Quem não gosta de vaqueiro
não é homem informado
é gente sem formação
que nada tem estudado
se esquece que seu sapato
é fetio do couro do gado EH

A pessoa do vaqueiro é extremamente simples.

Criado nas fazendas de geração para geração, ele dá continuidade ao atavismo da sua profissão ou seja: os filhos de um vaqueiro serão a trajetória dessa relação milenar do homem nordestino-caboclo com o seu ambiente.

Poucos fogem a essa tradição. Nascem como peões nas fazendas dos coronéis donos da posse latifundiária que só resulta num regime insôsso que nada faz por essa classe ingênua e tão necessária ao desenvolvimento do solo daquela região.

Impossível é intelectualizar um vaqueiro, pois a sua cultura é limitada no sentido retórico dos estudos analíticos e regionalistas que nada exprimem dessa vivência desvirtuada e des-conhecida para os que vivem no Sul. E o Sul é o centro cultural do país. Um intelecto nunca viu isso de perto. Porque o conhecimento institucionalizado do Nordeste é um grande equívoco. A cultura popular é o berço de todas as artes urbanizadas ou não, e por isso é temida pelos concretistas da frieza emocional-analítica, causa principal do bloqueio à arte cultural do Nordeste.

O Sul sente no estrangeiro o modelo da arte cultural brasileira.
 
Desafios
Zé Ramalho

Submergir e transcender pelas cordas que soam tão belas, tangidas pelo seu vaqueiro poeta e cantor, do povo e do gado.

O Nordeste apresenta sua arte. Simples e mágica que vem com a ingenuidade pura da inocência intelectual. O diamante bruto e eterno que traz nas arestas grosseiras o amálgama da criação primeira.

O objetivo é uma manifestação.

O vôo longo do carcará por sobre os queimados campos do sertão.

As asas do ícaro. As Asas Delta.

O sonho primeiro do homem de saltar para os abismos e alturas trazidos por ele até o nosso século!

A pedra da gávea-bonita,concretiza os homens de braços de plumas. O místico torna-se físico. O tempo confere a experiência, enquanto os signos se revelam num pensamento presente muito mais rápido do que a velocidade da vida no cálculo aritmético.

cada um dá o que tem
diz um dito soberano
e nesse sagrado plano
impera quem traz o bem
invoca no fim do além
a todo ser com mistério
enterra todo o império
na lucidez do tesouro
e passam pingos de ouro
em cada grande hemisfério

estamos num pelejar
e cada um deles aponta
um pouco da cada conta
que vamos apresentar
um jeito de calcular
a nossa capacidade
a grande tenacidade
nas horas de resistência
um pouco de consciência
entrando pela metade

escape das emboscadas
tocaias e armadilhas
dos bichos que pelas trilhas
infestam as madrugadas
estranhos pelas entradas
impedem as transações
nos olhos desses dragões
vejo brilhar a vingança
e vejo velho e criança
perdidos pelos sertões

há tanta dificuldade
de ver a estrela do dia
que versos de poesia
afirmam com falsidade
procuram numa verdade
um meio de acreditar
nas forças que vão salvar
o mundo inteiro do fundo
no fogo-fátuo profundo!
irão as chamas queimar

e por essa encruzilhada
um passo faz o destino
o erro mais pequenino
diminui a caminhada
fica preso na entrada
quem não souber se livrar
dos homens que vão tentar
dificultar tua estrada
um deles de emboscada
decerto vai te esperar

o portão dessas entradas
é ponte para os caminhos
um deles não tem espinhos
nem rifles nem espingardas
nem tiros nem emboscadas
nem rastros de animais
nem deuses nem imortais
conhecem dessa textura
nem toda literatura
espera saber demais

nos anos que reparei
nas horas que vão passando
os homens de quando em quando
refletem no que passei
é claro que observei
nas águas e nas correntes
que descem pelas vertentes
que jeito mais que eu podia
de vez em quando eu sentia
cercado de delinqüentes

vou falar através desse martelo
o que penso da tal ecologia
um assunto que rola todo dia
como sendo o vetor de um flagelo
não importa se é feio ou se é belo
já que causa tamanha reação
impossível é parar a progressão
das indústrias que vão aparecendo
cada dia que passa vão crescendo
mais motores e mais devastação

já que vamos no verso enveredar
pelos longos caminhos do improviso
apesar de ter cuca no juízo
para as rimas que eu vou apresentar
quando foi que aprendi no seu lugar
o que vi nos poetas cantadores
serem mais do que simples professores
a mais rica centelha do estudo
entupido ficou o linguarudo
quando viu que não pode contestar

há memórias que trazem computadas
os momentos mais belos dessa vida
ou então uma coisa enegrecida
que ficou entre as outras bem guardadas
elas podem servirem de camadas
para grandes espíritos ditões
ou então distraírem os salões
quando adultos ouvirem se lembrando
do que houve com eles viajando
através de sentidas orações

há memórias que de tão resistentes
conseguiram manter fotografado
uma fonte de luzes no passado
num pedaço de imagens reluzentes
um cenário de famas diferentes
uma cena que causa emoção
um mendigo que pede no porão
um abrigo na casa da lembrança
um amigo que pede que a criança
não viaje na suma solidão

tanta coisa acontece pela vida
que algumas mais fortes vão ficando
na memória de quem for se lembrando
do que foram tais horas revividas
não é certo que sejam esquecidas
por um louco que as queria olvidar
mas quem ouve na vida vai contar
a seus filhos aos netos e bisnetos
e aos homens de dons obsoletos
que não sabem mudar nem que pensar

trinta anos que passam pela vida
já nos deixam no rosto alguma marca
e por essa idade se embarca
numa forte viagem decidida
uma força ficou esclarecida
pelas coisas que eu pude observar
como é bom se perder e se ganhar
nas idades que o homem vai vivendo
são as fases que vão se sucedendo
em cada uma ele tem do que gozar

LEBLON AGALOPADO

esse gado parece minha gente
caminhando perdido nas estradas
desce as ruas rolando nas calçadas
foi Jesus que o fez tão displicente
talião me falou dente por dente
e eu por gado engoli essa engrezia
me ferraram a pele que cobria
reinvento a história passa a passo
gado manso descendo cabisbaixo
de cansaço eu invento a fantasia

vejo os carros nas ruas do Leblon
reluzindo nas luzes quando passam
e as meninas dos olhos se embaçam
procurando saber o que é bom
meu ouvido inventa um novo tom
muito mais do que aquilo que aprendeu
quando sonha nos braços de morfeu
o barulho transforma em harmonia
e eu destilo o ruído em sinfonia
e desenrolo o novelo de Teseu

Obs: improviso de Alceu Valença e Zé Ramalho num bar no Leblon. Rio / Setembro / 77
 
Incidências de luz
Zé Ramalho

Esse quarto tem uma profunda magia.

Um ajuntamento de coisas que se combinam pela estranheza e mais ainda pela natureza que lhes diz respeito. Mais ainda em mim se integram em ação catalizadora, assimilada por tudo que se mexe, e se mistura dentro de mim, dentro de minha cabeça, antes que eu me esqueça, antes que eu me aborreça, antes que amoleça, antes que amanheça.., eu quero sair correndo em busca de outras matérias que não as minhas, outras incidências de luz, outros gases leves que não venenosos, e sinto uma saudade intensa da magia da infância. Do encontro bruto do diamante cor de rocha. Das limitações humildes em que minha imaginação voava.., e os encantos frios da noite que viam com seus olhos de eterno vigia.

esse quarto é assim:
um crescente § um minguante
um mirante § um instante maestro
o resto é destro / é dentro / é bólido
gostando / trincando / bicho-gente
na hora de dormir
de comer
de beber
de deitar
de amar
aqui como lá for a
devemos lembrar...
muito mais que esquecer
escrevo e conto
marco cada respiração que vai para o ar
conto os fios que fabrico… os nós
ficam comigo e trazem
à qualquer hora vindo mais pedra
corro mais coelho
fico mais pernas
sonho mais árvores
fruto ave / como coisas
outras que alucinam
pela sua estranha ritualidade

caem pingos de todas as frutas
chovem sucos de sabores diversos
o ar recende a chicletes
e o mascado dos bois e das vacas
que se faz ouvir entre o pasto amarelo
onde as plantas dormiram
com o mofo das roupas abafadas
falta de respiração
angústia e sono / estado de catalepsia
capital das sensações brancas
claras como a clara
como a gema / como o negro
como o poder adormecido do povo

as realidades sensoriais
as percepções
as diversas dimensões
as projeções mentais
as ondas
as sintonias
o mar

os reflexos que lanço na mesa
representam minha geração
são do prisma do filtro solar
são da fonte da renutrição
minha fome se abate num beijo
meu desejo de ser canibal
carnaval que só dura três dias
letargias do povo sangrar

vão chegar minha mãe, meus parentes,
novamente vão iluminar
lampiões em ruelas antigas
uma música solta no ar

me entregar só for na tocaia
baleado de costas e tal
mas o mal que se afasta num rio
desafia nosso carnaval
prá você que não é perseguido
pelo horizonte de uma prisão
visão de barras / barras de opressão
visão de aço / barras do coração
arquitete sua fuga na noite
pelo canto-olho da imaginação

mantenha sua mão
desestremeça... não desanime
olhe a reta que à sua frente
caminhe por ela contorça e drible
faça do gol uma ponte
faça da ponte a passagem
passe para o lado do cisne
cisme com a face das águas
fique onde não haja mágoas

O tango como desespero. É a paixão dos submundos. As luzes de neón triste e a letargia dos pares, a beleza sensual e extraordinária da decadência. Aqueles dias antigos que serão sempre e agora, o mesmo nó do sufoco... que aperta de hora em hora

até que a linda dama chegue
na carruagem de sonhos delirantes
aqueles temporais de carne
que tudo arrancaram e tudo arrastaram
com olhos de sampaco e temor
vermelhos cortados de veias
procuram... procuram... distantes
a brecha longa da fuga
a faca fresta da noite
até que os donos do mundo
removam a sombra dos olhos
e a maquiagem derreta
no coração dos metais
vamos tecendo essa teia
dormindo soltos no chão
sem precisar do novelo
dos labirintos-pensão
que alugam quartos senhoras
com muito rigor e acato
a moços de fino trato
rapazes de muito orgulho

cansam-se as coisas subterrâneas
os que ainda vivem debaixo da grama
das ervas / da cama
da copa das árvores / da copa do baralho
das ervas daninhas
dos que choram por telegrama
as delícias do seu sucessor
e você professor
que ensina aos meninos do mundo
as certezas de cada segundo
que passam por essa história
por essa memória / por oratória
um confessionário que ilude
as estantes e os instantes
os esforços todos úteis
não conseguem aliviar
as dores que voltam e voam
como aves ferozes
de dentes afladíssimos
no céu todas as bocas
que só desejam cantar
e embora queiram sempre se renovar
não há maneiras de se apagar
aquelas sombras negras dos tiranos
que sucumbiram tantos semelhantes
com a lugubrez da ansiedade
dos que acabaram pendurados
na agonia de suas forcas

Somos tantos e tantos ainda por vir, que eu me assombro. Ante os que ainda virão depois que todos chegarem. O oceano tremeu de raiva e desespero por não poder nos dizer. E esperneou. Rugiu a noite inteira enquanto o homem... chorava.

Filhos do câncer
Zé Ramalho - -- -

disseram que Zarathustra
falava tudo o que já haviam antes
escutado os pais e avós

meu sono está inquieto
enquanto fumo me roubam o sono
e quero mais acabar
da melhor maneira possível
o modo de consumir
as coisas que mais proibidas
mais tornam atraentes
que temo a passagem mais larga

demais grande e desigual
como se todos todas correntes
do rio pudesse arrastar

ninguém mais pode fugir
das coisas boas daqui
é ruim quem não trouxe saudade
fez do segredo a maldade
enxotou-se na cidade
e fez do velho progresso
que ninguém mais quis fugir
a felicidade arriscada
em seis metros de iludir

o mágico chega
com seus passes estranhos

com seus olhos de povo
conduzindo rebanhos

retirando animais
dentro da roupa suja

com seus dedos de louco
impedindo que fujam

nadando na meia-noite
bebendo no meio-dia
tomando banhos de cor
dormindo na ventania

como um mendigo
embriagado e úmido
procurou licores
e engoliu amores

o narcótico manso
roubei lá das flores
e o motivo descanso
me trouxe procuras
ruelas escuras
entre noites e sombras
e o estigma morto

os dinossauros imagináveis
aqui desceram as desovas
e tantas provas / tantos enigmas
tantos estigmas / que hoje nutridos
nunca lembrados
nunca cansados
nem mencionados
as edições e partículas
que os vibram e que os passam
que se entregam à gente
que se intrometem na gente
no estranho e curioso equívoco
de tudo que foi ensinado

pois das teclas desses órgãos
soam malditas notas
acôrdos e transações

procuram e se expulsam
num sublime regime
mordem e se devoram
contudo se arremessam

em seguida se arrependem
e intoxicam-se
tornam-se tigres / domáveis
como os da esso
bichanos de estimação
vadios gatos da rua

e os ratos lambem-na nua
enquanto o queijo no chão
esconde uma armadilha
que tende a submissão

por mais que se limpe.., a poeira
ela vem... de novo e pousa

por mais que se lave a roupa
ela fica suja... e mancha

por mais que se queira limpo
algo apodrece... e fede

mesmo porque... tudo que envelhece
se torna verme
volta prá terra
vira sub-solo
crosta do planeta

o estado ruim da matéria
o desenbocar das artérias
o impuro sangue das veias
os poucos pratos da ceia

não bastariam para dizer
tudo que integra e une

tudo que imagino e gasto
tudo que uno e descolo

tudo o que faço e comovo
tudo o que foi e que vi
tudo o que viu e ficou

não queremos que fique
o lado triste das coisas
nem o olho escuro
que veio procurar de uma forma
de veias abertas misturas
mais fortes que a própria morte
mais belos que a mais bonita
mais tristes que harmonia
mais sábios que eternidade
mais filhos que o desejo
do mais alucinado beijo
na força quente do inferno

no rastro a cobra
serpente rainha
demônio vitelo
arrasta a bainha
moleja sozinha
por dentro e por for a
a cobra caminha
medonho segredo
no seu requebrar

na lente da taça
a cor do veneno
no seu sibilar
as sílabas tremem

mulheres e plumas
se enlaçam noturnas
em anéis que sufocam
as presas do tempo
me estás parecendo
que os dentes que mostras
estão rebentados
de tanto picar

além do encanto
da flauta e do cesto
conheço magias de te molestar

não é de maçã
não é de manhã
não é de satã
que eu quero falar

é sim do mistério
das pedras que trago
no meio das pernas para caminhar

aninha teus ovos
nas terras do fogo
nos cacos do povo
repõe a manhã

desperta a sirene
cuidado com o lince
com a água sombria
sapatos e patas
pisadas e socos

a gema tão clara
a casca do ovo
filhotes pequenos

se arrastem bem menos
que as piranhas do rio
que o pecado de adão

o dia vem
e com ele os pássaros

a dança das luzes
e as sombras se escondem

uma profunda quietude... acontece

por entre as veias
um córrego lança sereno
um rio grande e vermelho
na catacumba cardíaca
até que ouve e adormece

os vasos cheios de plantas
todas vistas e nunca tocadas

sobre o sol da terra
sobre a fé dos montes
sobre os horizontes
as estrelas descalças
não sabemos muito
do seu sono brilhante
de astros encadenados
derramando fulgores
entre cada paixão
 
Sete poemas familiares
Zé Ramalho - -- -

POEMA UM

as pestanas do braço do violão
dormem sob as cordas em letargia
vindas do som das flêrpas macias
despertam sob os trastes / abandonados
vividos e pressionados em posição dúbia
reinventam armações
conhecem o tato do seu dono
dedos encerram tonantes medonhos
e o bojo do seu violão
estômago feito em madeira
e o desempenho das mãos
gemeram quando ecoaram
respondendo à fricção faiscante
do raio-aço inoxidável
primas / irmãs / bordões e mães d'água.

POEMA DOIS

escrever para a mãe
como quem escreve para o início
para a origem do primeiro sopro
para as carnes que me envolveram
em meu corpo pleno de plasma
escudo cama e o teto
quando tudo era de cristal
mulher de ferro / derretida em fogo
lava cuspida em dor e cor
estaticamente parada / de pé
escorrega e espera-me
que um vulto passe e lhe toque
sua epiderme metálica e macia
rígido olhar de procuras
mordidas de átomos
alquímicas e nuas
suas duras paixões
e os movimentos quebraram
dunas e arestas do estômago
que a mim tão bem me cabiam.

POEMA TRÊS

meus passos são meus amigos
meus passos são inimigos
do chão que não caminhar

moleques de rua
garotos de pele nua
molambos de se lavar

de fato são companheiros
foram oleiros
do barro que eu não pisei

quando anoitece
desentristece pelas pedras
e pelas as matas
o calcanhar impossível
e invulnerável do sertão
convidando-me a cavalgar
no teu dorso desmontado
como peças brilhantes
de automóveis acidentados

luminosos desastres
jogaram no meio da noite
o que jorrou da tua boca
inexplicavel segredo

os dentes da madrugada
trincaram teu desamor
morderam tua chegada
marcaram eu pecador

a lâmina quente do sol
cortou a sombra do dia
e um silêncio pousou
nas trevas secas do dia.

POEMA QUATRO

como será impossível
esconder no pensamento
quando pela medida linear do metro
eu estou racionalmente longe de você

quando pela medida estranha do insólido

eu estou perto e até dentro de você
sentindo as emoções que te movimentam
e que passeiam e dormem
dentro de mim / todos os dias

como cordinhas transparentes
como encontros revitalizantes
como comida / como alegria / como bebida

como no sono
faço parte da tua coluna vertebral
estás nos meus cabelos e pernas
encontro tua luz nas íntimas pedras
e com a impressão digital do espírito
como o despertar dessas coisas
de todas as coisas do início
do comêço do primeiro movimento
das sinfonias

do gen
do grão
e do grande.

POEMA CINCO

faz um ano que João respira
um resfolego como o do fole
remexendo / procurando / escutando
aprendendo tudo o que lhe provoca
ressonando em sonhos
pedaços de estrelinhas
que terminam em choros de amor

sua luz veio de um poço de cor
mais ensina que mais aprende
permanece nos brilhos do ser
que responde nas suas entranhas
a final carne filho da mãe
com desenhos do símbolo pai
representa um terço de todas as coisas
um terço rezado como se fosse novena

o resto é a soma do que tem que ser seu

desenvolver essas partes
conforme a sua história / conforme a memória
conforme a novena / e a graça alcançada

e o próximo passo
será dado na frente
daquilo que se entreolha
à reta que parte da íris
no sentido vasto / de qualquer direção.

POEMA SEIS

hildebrando / brando como mãe
calmo como um beijo de amor / não de paixão
amigo / pássaro sem hora
de voar quando quiser ir e voltar
gôndola de leme plácido
superficie de cisne / quase inundou
a fala pelo rio antigo / quase acertou
a verdadeira entidade desse pacificador

é o cacique
que leu a carta / que é teu amigo
és solitário / és caçador
admirável homem / és salvador

aquela história do primeiro homem
que por sua vez
aqui chegou e começou tudo
devem ter sido iguais
a tua doida bonança
de querer tanto bem ao próximo
coisa rara de ter hoje em dia
comungantes nessa profissão

POEMA SETE

na tarde antiga
a criança e o jovem
cuidavam das rugas
dos seres mortais

pois há nos anúncios
dos seus ancestrais
uma doença que corre
por frente e por trás

o homem que fica
na tábua oscilante
constrói o instante
esquece a altura

retém a vertigem
não morre de medo
do mestre de obras

por entre os morros
da guanabara espremem-se
as colméias de cimento

o recorte cinza da paisagem
nesses relevos de pedra e sonho
sufocam os beijos dos namorados
trocados em plena praça pública

os namorados existem
as abelhas existem
o mel adoça
o beijo é doce

a rainha é solitária
e o sol prossegue sua rotina diária
sem saber mais para onde ir

poderia seguir calmamente
sua pegada de fogo
mas minha cabeça
não cabe nesse pacote
nem a lua também
me mostraria seus pudores frios

então só me resta
olhar a densa neblina
desses olhos que bem poderiam ser
os olhos do próprio Deus.

    

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NOSSA VITRINE

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