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Zé Ramalho
pássaro cativo
Zé Ramalho
O. M. Comunicações LTDA
Neon
Lupo de Gás morava em pleno Manaíra há quase dez anos. Morava é um
adjetivo, pois que tinha por teto uma pobre armação de caibros e palhas
de coqueiro, acertados de um modo qualquer e frágeis, como "moleira" de
recém-nascido.
Lupo não fazia outra coisa senão "inventar". Tudo que imaginava, fazia.
Inventava um absurdo-oculto. Às vezes quando saía, os moleques mexiam
com ele. Neon não era um velho neurótico, mas ficava irritado quando lhe
chamavam de Pardal. Não gostava disso. Ele era Neon Lupo de Gás, o
protótipo atual de Leonardo da Vinci, saído há quase dez anos da Colônia
Juliano Moreira, onde passou toda a sua vida até então. Solto,
preparava-se para mostrar à Paraíba e ao mundo, todo o conhecimento que
obtivera naquela casa de "futuristas". Era uma casa de CRIAR.
Seu último projeto era "muito louco". Projeto secreto. Uma soma de tudo
que já imaginara da Terra, da vida, da morte, do Ser. Iria mostrar a
todos uma revolucionária invenção: "A CADEIRA QUE VOA". Ah! e ninguém
mais sabia disso, à exceção de algumas baratas cascudas que ele criava
dentro de uma caixa de sapatos. Eram ótimas companhias, dizia ele.
A cadeira está pronta há quase um mês. Faltava o acabamento final:
alguns polimentos e pronto! Iria fazer o teste prático que o lançaria
como gênio do futuro em todas as enciclopédias da história e do tempo.
Guardava no fundo da choupana dois litros família de Coca-Cola
deteriorada, que seriam usados como combustível. A bateria perfeita que
encontrou para mover o invento era um pequeno cérebro de pombo, que ele
conseguiu conservar intacto à custa de gelo e serra de madeira. Segundo
Lupo, o cérebro moveria qualquer nave terrena. Era um processo de
Ioga-Mental. A concentração do vôo de um pássaro mentalizado no cérebro
de um homem. A cadeira serviria de móvel relansante. Os miolos do pombo
seriam incrustados na cadeira para que ela servisse de membros da ave.
Apenas de armação. Os impulsos concentrados seriam o motor. Um veículo
que levita, que voa. Era telepatia-dirigida, dizia Neon Lupo de Gás. Um
pássaro humano.
Neon Lupo não sabia de uma coisa: quem teria lhe dado esse nome? Nunca
soube quem foram seus pais. O povo dizia que assim era chamado por causa
de sua magreza. Um "bicho" mais atrevido chamou-o um dia de Tripa
Fosforescente. Maldade grossa, que ele guardou num baú profundo, fechado
a exemplo das herméticas salas do Apocalipse.
Passaram-se três dias e Neon aperfeiçoou seu invento. Poliu-o com a
saliva fabricada em sua própria boca. Abasteceu-o com o conteúdo dos
litros de Coca e quedou-se um instante para contemplar o seu invento.
Sentiu necessi-dade de um nome para batizar a nave. E com um brilho
estranho nos olhos chamou-a de PÁSSARO CATIVO.
Fez os últimos preparativos, sentou-se nela várias vezes e marcou para o
dia seguinte a prova final. Nessa noite Neon Lupo de Gás não conseguiu
dormir. Ansioso, esperava o olho do dia. Faminto, engoliu todas as
baratas. Exultante, ouviu os berros do falo.
E às nove horas dessa manhã, Neon ajustou os controles da máquina com a
vibração do seu pensamento. Precisava obter uma perfeita concentração
para conseguir a sintonia do pássaro. O cérebro do pombo palpitava,
ativado pela Coca deteriorada. Antes, achou por bem derrubar as quatro
paredes que o rodeavam. Ele e o Pássaro Cativo não precisariam mais
delas,pois a faina o esperava e, com ela o conforto. Com fúria, empurrou
as frágeis paredes e elas desabaram como papel.
Lupo agora estava sentado na cadeira, seu olhar era mais estranho ainda.
E ouviu-se um ruído que saía do invento, semelhante, ao de muitos
pássaros batendo assas. Nessa hora os moleques correram da rua. Pardal
passara a ser uma as-sombração, tamanho era o absurdo daquela visão de
conto de fadas.
Neon fitava um ponto inexistente. Os olhos não batiam, nem ouviria
qualquer ruído que se fizesse a seu redor. Então a nave começou a
levitar. E, lentamente como num palco de magia, parou a uma altura de
três metros do solo.
A essa altura, os vizinhos e demais habitantes do bairro corriam para
ver aquela aparição no céu. Para eles era o fim que se anunciava. Neon
sentiu ter adquirido o controle total da mente da ave. Seu cérebro era
agora o de um pombo aprisionado, louco para voar. Houve a transmutação.
Afinal foram anos e anos de prisão interior e exterior. Olhou com desdém
aquelas pessoas lá em baixo e impulsionou o pensamento para a frente. A
nave deslizou no ar como Trenó de Papai Noel. Lançou uma vontade de 50
km e a velocidade foi escrava do seu pensamento. Atingiu a praia e, com
um olhar para a direita, fez com que o aparelho seguisse dócil a rota
por ele determinada.
Contemplando Tambaú de um ponto onde era o único mortal a fazê-lo, Neon
sentiu um prazer imenso. Alguns banhistas desmaiavam, primeiros carros
de encontro às árvores e o Pássaro Cativo ganha toda a atenção da praia.
Neon sentiu que sobrevoava o Hotel Tambaú. E deu a primeira exibição do
seu engenho, com um leve desejo desceu em looping, descrevendo uma volta
triunfante no interior do hotel. Alguns turistas mais otários acharam
interessante, outros continuaram batendo fotos. Só um garçon do bar o
reconheceu. Não pôde esconder o seu assombro ao ver Neon sentado naquela
coisa que voava e sua reação foi chorar descontroladamente. Neon indicou
uma nova rota com seus dois olhos fundos e estranhos,e o pássaro
seguiu-o, fiel e obediente.
A uma altura de 5 metros do solo, Neon sentiu vontade de testar o
controle de velocidade da nave. Pensou em 100 km e obteve-os facilmente.
A mente e a nave eram um pássaro só. E foi a 100 km por hora que Neon
deu um pique do início da Epitácio Pessoa até o seu final, num magnífico
vôo de precisão e controle. Reteve a velocidade como um rolo de papel
higiênico.
Neon pretendia dar, no centro da cidade, sua demonstração máxima do
engenho. Deslizou calmamente pela avenida Tambiá, retendo 40 km como
velocidade. Dezenas de carros espavoridos já o seguiam, buzinando
loucamente. Incrédulos, batiam nas árvores. Atropelos, gritos e berros
deram música aos ouvidos de Neon. Pessoas tentavam correr atrás
procurando descobrir o lógico do que estava acontecendo. Chamaram a
rádio-patrulha. Chamaram o corpo de bombeiros. Ambos recusaram-se a vir
porque acharam o motivo ridículo de se crer.
Em frente ao Colégio Pio XII Neon concentrou-se em 30km mas
concentrou-se a uma respeitável altura de 50 metros. Segue levemente a
rua Duque de Caxias. A multidão, atrás, seguia esbugalhada. Um pânico de
terremoto. O pássaro seguia, indiferente a tudo. Chegando no Viaduto
parou em pleno ar, assombrando ainda mais a platéia abismada. Ali ficou
durante alguns momentos, estático. Neon aproveitava o ensejo público
para se apresentar ao povo como inventor do século XXI. Levantou a mão
num gesto de quem pede silêncio. Tudo calou. Os edifícios daquela área
já se encontravam apinhados de gente pelas janelas. Parecia que os
prédios iam vomitar os curiosos. Um silêncio de tumba se fez. Neon
berrou a plenos pulmões:
Ouça-me, povo da Paraíba. Lembram-se de mim? Sou Neon Lupo de Gás. Um
dos que pertencem à classe de Caixa D'Água, de Mocidade, de Vassoura, de
Pedro Corredor. Hoje é um dia diferente. Trago uma invenção, minha, para
que todos vejam como prova de minha capacidade de inventar. Esse
aparelho no qual estou sentado, é de minha criação. Com ele, nosso
Estado será respeitado como berço das invenções do futuro e EU serei
respeitado também. Não seremos mais capacho da ignorância dos
nordestinos. Quero que as autoridades me ouçam com atenção e respeito
para que possamos estudar mutuamente os inestimáveis serviços que este
aparelho pode oferecer à humanidade. Continuo agora minha demonstração.
Por favor procurem se controlar. Vejam evitando atropelos. Adeus!
Dito isso, retomou o movimento da nave, dirigindo-se até o Palácio da
Justiça onde contorna a praça, causando novamente o impacto, na lógica
acomodada. Em frente ao prédio da Assembléia, numa manobra digna de um
piloto espacial, Neon encostou o aparelho junto à parede e deteve-se
para admirar os símbolos de aço que formavam o mural da fachada de um
prédio. Um dos símbolos era um pássaro, os outros pareciam-lhe como
folhas caindo.
Lá em baixo a multidão era uma só grande boca aberta, a baba corria como
regato. Os olhos de todos tremiam, incrédulos.
Néon já se sentia cansado e desejou voltar. Voltar para onde?
Sua cabana não exisita mais. Teria que procurar um local adequado para
pousar o Pássaro Cativo. Sua mente pedia repouso e calma. O aparelho
tomou a direção do Parque Solon de Lucena. Chegando à Lagoa, num orgulho
próprio de vencedor, descreveu nova volta olímpica, deixando, na
periferia, pessoas gesticulando e correndo.
Em seguida tomou a ladeira que vai dar no Liceu a uma velocidade lenta,
para que os estudantes também o vissem. Desejava que os jovens o
apoiassem o quanto antes. Todos os alunos abandonaram as classes em
balbúrdia e "zorra". – Um homem sentado numa cadeira passou voando ali,
mesmo em frente deles! – É incrível! rosnou uma "cocota"! – "Porra"!
gritou um moleque. – "Meu Deus"! gritaram as senhoras. Criou-se imediato
número de pessoas a se chocarem e a se empurrarem, em pânico. Era uma
visão de Nostradamus.
A passeata seguiu incólume atrás do aparelho. Sempre crescendo e sempre
rugindo. Ao cruzar o sinal da Maximiano Figueiredo, Neon ouviu um apito
do guarda de trânsito. Voando a 3 metros de altura,seu vôo passou como
nuvem, por cima do cruzamento.
O guarda atirou bem na cabeça de Neon Lupo de Gás. Com um revólver que
puxou da cintura. O baque do aparelho fez-se ouvir, caindo no terreno do
prédio do DER. Neon, com os miolos estourados, parecia um manequim,
depois do incêndio. Seus olhos ainda eram estranhos. O Pássaro Cativo se
espalhou em pedaços pelo gramado. A multidão cercou o local. Grande
Babel se estabelece, entre as diversas versões do acontecido. Chegam as
autoridades. A cabo de instantes controlam a sinagoga. Trouxeram o
guarda que desferiu o tiro mortal. Um moreno suado e bárbaro, pelo jeito
de falar.
– Porque atirou no rapaz? perguntaram-lhe.
– O sinal estava fechado! respondeu o guarda.
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NOSSA VITRINE |
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