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Zé Ramalho
depoimento
in MPBook Zé Ramalho - 17/02/1998
Jorge Salomão
Vim de Brejo do Cruz. Tem uma
montanha de pedra nessa cidade onde nasci. Fica mais ou menos a 400 km
de João Pessoa. Morei em Campina Grande, depois fui para João Pessoa,
onde tive oportunidade de ouvir rádio. Daí surgiu a vontade de tocar
violão ouvindo Vital Farias, compositor que tocava guitarra no conjunto
Os Quatro Loucos, em João Pessoa. Uma vez tive uma visão incrível: Os
Quatro Loucos tocando na praça e Vital Farias tocava uma guitarra
vermelha. Achei aquilo tão bonito. Naquele momento me deu vontade de
tocar instrumento semelhante. Procurei aprender violão olhando as
pessoas tocarem. Essas músicas de conjunto de baile foram muito
importantes para mim. Durante cinco ou seis anos pratiquei
exaustivamente músicas de todo o tipo, tocávamos quase quatro horas para
as pessoas dançarem. Isso foi em 65, 66, durante a explosão da
Beatlemania no mundo e da Jovem Guarda aqui no Brasil. Eu sabia quase
todos os sucessos da Jovem Guarda. Toquei também no Os Demônios, The
Gentlemen, Eles. Era como um time de futebol. O cara saía de um conjunto
e passava para outro. Dessa fase eu não tenho vergonha nenhuma. Vital
Farias tem um pouco de vergonha. Ele acha que compromete a imagem dele.
Eu tenho o maior carinho por esse início. Foi o que me deu um embalo
danado. É uma coisa popular. Com 15 anos de idade somos puros, não temos
tanto intelectualismo na nossa cabeça. Tenho boas recordações dessa
fase. Fazíamos as coisas pela intuição, pela animação, íamos na onda.
Foi muito bom tudo isso. Tenho carinho e gratidão até hoje pelo pessoal
da Jovem Guarda, principalmente pelo Renato Barros (Renato e seus Blue
Caps). É um praça. De vez em quando me encontro com ele nos aeroportos,
um cara que me trouxe muita alegria. A música dele, a minha, tanta
gente.... Foi assim que aprendi. A gente ensaiava, era tudo
profissional, tínhamos equipamento e ganhávamos nas apresentações.
Eu tinha um violão, mas vendi para comprar uma guitarra nacional,
Giannini. Era a marca que tinha na época. Passei a ser guitarrista solo.
Passei a tirar, copiar solos de muitos grupos, a ter uma certa
habilidade com o instrumento. Quando larguei a guitarra, descobri as
violas do sertão. Fiz imediatamente uma mistura, de forma a fazer
aqueles solos com aquelas cordas dobradas. Foi uma mudança radical.
Quando passei a tocar violão descobri o universo do sertão, do Nordeste.
Passei a me interessar pelos cantadores, violeiros, o que foi
fundamental para mim. Descobri a forma como eles escrevem os folhetos de
cordel. Estudei ao lado deles. Otacílio Batista era urn dos maiores
violeiros ainda vivos. Ficava atrás deles. Onde tinha cantorias de
viola, onde tinha os desafios, na casa de fulano ou de sicrano, eu ia
com interesse de absorver aquelas rimas, aquelas métricas. Passei a ler
tudo que era livro de cordel. Eu estava a fim de mergulhar nesse
universo, pois sabia que era minto importante para mim. Logo depois que
comecei a absorver aquela escrita, comecei a fazer as minhas primeiras
letras. Eu fazia versões para os conjuntos de baile. Eram versões
infantis dos Beatles, de algumas músicas da época. Foram os meus
primeiros exercícios, uma vontade danada de escrever. Paralelo aos
conjuntos de baile, também já estava entrando na Universidade. Fiz até o
segundo ano da faculdade de medicina de João Pessoa. Nessa época eu
passei a ler muito, nunca li tanto em toda a minha, vida. Tinha vinte e
poucos anos. Lia muitos livros esotéricos, poesia, Carlos Castañeda,
discos voadores, eram os que mais me interessavam. E livros de alquimia.
Absorvi muita coisa disso tudo no meu trabalho. Eu produzo uma certa
química nas pessoas que prestam atenção no meu trabalho. Uma sensação de
viagem. Comunguei também no início dos anos 70 com o psicodelismo, o
LSD, aqueles chás de cogumelo, essas coisas todas foram importantes para
mim. Misturei tudo isso e saiu a primeira leva de músicas: Avôhai, Vila
do Sossego e Chão de Giz. Essas músicas foram feitas na época dessas
experiências. Era 73. Essas experiências me deram intuição, vontade de
projetar essas luzes para me apresentar como autor. Minha proposta desde
o início era fazer uma coisa diferente, no sentido de idéias, criar
situações, criar imagens com as letras e com o máximo de alucinação
possível. Avôhai, por exemplo, tem a descrição de viagem na própria
letra da música.
Zé Limeira era uma espécie de Salvador Dalí da literatura de cordel. Era
o samba do crioulo doido. Não tinham racionalidade nenhuma as imagens
que ele criava. Ficou conhecido exatamente por isso. Mergulhei muito na,
obra dele. Ele dizia: Jogue tudo no ar, junte tudinho, instale-se mais
completamente, o resto são imagens que fecham assim". Você começa a
misturar essas coisas todas e atrai um lado engraçado, pitoresco, essa
visão apocalíptica nos versos dele e pode ser visto como urna coisa
seríssima. Essa época foi a de minha maior produção pela descoberta
dessas emoções, de participar dos acontecimentos do mundo, dos festivais
de rock, etc..
Eu curto muito essa renovação no meu trabalho. Teve tempo em que pensei
que minha carreira tinha encerrado. A mídia junto com as gravadoras,
fazem uma grande roleta girando. As coisas às vezes se configuram certas
ou totalmente erradas. Já passei por tudo que você possa imaginar.
Ascensões e quedas. Duas ou três vezes já fiquei no topo e tive a mesma
sensação de queda e de vazio, ou seja, se não der certo as gravadoras
não te querem mais. Tudo isso eu já passei e acho sempre que só se colhe
o que se merece. Se isso está acontecendo com você, tem que saber a hora
de sair, tirar seu time e preparar outro melhor. Se for assim, ainda dá
tempo de ganhar o campeonato no segundo turno. Isso aconteceu mais ou
menos com o disco Antologia. Com Chão de Giz, que fiz nos anos 70, eu
falei em camisa-de-vênus. Elba regravou esta música no ano passado, no
disco Leão do Norte e essa música voltou às paradas de sucesso 20 anos
depois, já com a AIDS pairando. Na época quando falei em
camisa-de-vênus, eu estava falando no corte do prazer, você se privar do
prazer carnal e total. Jamais imaginei que iria acontecer a AIDS nas
nossas vidas. Ela regravou a intensidade da camisa-de-vênus que na época
entrou como urna casualidade, ela projeta isso novamente, e a torna
contemporânea. Essa música foi feita para um amor platônico que tive por
urna mulher casada. Eu era garotão, ela era uma mulher de um industrial
e muito rica. Ela me dava uns flertes, e isso me inspirou essa música.
Eu tinha mais ou menos vinte anos. Inocente, burro e besta como dizia
Raul.
Admirável Gado Novo tem mais ou menos a mesma situação. Ela veio a fazer
sucesso muitos anos depois, agora na novela Rei do Gado, corn o problema
dos sem-terra, e ganhou projeção corn esse problema social que tem o
Brasil. Foi uma grande surpresa. Ela primeiramente saiu em 1973. Eu
investi muito nessas canções pelo fato de você sempre apresentar, quando
você está gravando, material novo. No tempo em que a gente está vivendo,
é como atirar pérolas aos porcos. Não dá tempo de absorver tudo. Eu
passei quatro anos sem gravar. Eu investi nessas canções, fiquei tocando
em todos os meus shows. Eu tenho uma agenda anual de shows pelo Brasil
que faço há mais de 15 anos. Duas vezes por ano eu rodo o Brasil
todinho, sempre tocando essas mesmas músicas. Houve rima espécie de
renovação de público. Os filhos dos amigos que me acompanhavam no início
da minha carreira, hoje freqüentam os meus shows. Trabalho também junto
com esses componentes e muita coisa aconteceu de uma vez só. O show O
Grande Encontro, com Elba Ramalho, Alceu Valença e Geraldo Azevedo,
também demonstrou uma unidade. Uma espécie de alinhamento do trabalho
com essa época que estamos vivendo. O Grande Encontro foi de total
liberdade para cada um.
Eu aprendi muita coisa da cultura estrangeira, muita coisa de rock,
música indiana, absorvi tudo isso, às vezes a gente pode errar quando
mistura muitas coisas. É assim que é o trabalho de um alquimista, o
mundo é assim, vai-se errando, acertando... Alguns discos que fiz não
foram bons. Eu exagerei. Fui muito criticado por estar me tornando um
artista pop: às vezes a gente anda por carminhos que só a gente vai
entendendo. Isso é pra dizer que eu absorvi muito das coisas e muitas
vezes eu extrapolava. De qualquer forma isso serve para quê? Para
demonstrar um conhecimento que você adquiriu e que às vezes entra em
processo de explodir. Você tem que explodir de qualquer forma. Isso tudo
me trouxe várias culturas lá do Nordeste. Quando quero me encher de
idéias, eu mergulho na obra do Nordeste, isto é, passo a ler os
cantadores, a ouvir Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, João do Valle,
ler João Gabral, e principalmente os poetas populares que me dão a
sensação de estar mergulhando profundamente naquele universo. Me
reabasteço de energias. Não sou pastor de religião nenhuma, porém eu
propago uma forma das pessoas olharem mais para o alto e de se sentirem
mais amigas umas das outras. Tento passar isso nas minhas mensagens.
Música é para botar as pessoas para viajar. Com palavras,
principalmente, é mais difícil ainda.
Em 75 vim com Alceu Valença para o Rio no show "Vou Danado pra Catende",
que fazíamos no Teatro Teresa Raquel. Tocava violão de 12 cordas, viola
de 10 e ukulelê, instrumento havaiano de 4 cordas. Esse trabalho me deu
uma projeção pois também fazia direção musical do show. Foi uma projeção
boa. Dei muito do meu trabalho, da minha árvore para o trabalho de
Alceu. Eu arrasava no meu trabalho, porém ninguém me conhecia ainda. Eu
já compunha. Quase um ano depois, aqui no Rio de Janeiro, eu já estava
ralando, já tinha saído da banda do Alceu e estava definitivamente aqui
naqueles longos corredores das gravadoras. NaqueIe tempo era difícil
gravar. Minha música não era considerad viável. Àquela época eu era zero
do zero. Foi Carlos Alberto Sion quem conseguiu uma demo para mim no
estúdio da Polygram. Eu gravei essa demo. Sion estava produzindo Fagner
e outros artistas. Eu fui bater na mão dele. Esse cabra foi quem
produziu o meu primeiro disco. Quando fiz minha demo ele me deu um rolo
de fita e mandou eu ficar apresentado às gravadoras. Foi com essa fita
que eu rodei todas as gravadoras do Rio de Janeiro. Isso exaustivamente,
o ruim era você se manter asseado todo dia quando acordava. "Eu vim para
ca com minha viola, uma sacola e parei na rodoviária", como diz a música
do Belchior. A época era muito dura. Eu dormia em banco de praça, em
frente ao Copacabana Palace nas areias, na Praça Saens Peña, na Tijuca,
e em carros de amigos que me deixavam dormir no banco de trás. Vim para
cá sabendo que ia encarar essa barra pesada. Porém com a idade que eu
tinha e com o que tinha vivido, com a loucura que estava na minha cabeça
na época de hippielândia, não tinha problema nenhum para mim. O ruim era
você se manter limpo e asseado todo o dia porque também recusei ajuda da
família lá de João Pessoa, senão ficava muito fácil. Eu queria saber se
eu era tão espertinho assim.
As pessoas escuitavam e não entendiam e realmente devia ser muito
difícil para elas entenderem. Achava que aquilo não iria vender. Jogavam
os papeis sobre as mesas. Fui de gravadora em gravadora, até que um dia
fui na CBS, onde os nordestinos estavam começando a entrar e o Jairo
Pires escutou Avôhai na minha frente. Ele era um cara espiritualizado e
bateu no paladar dele. Eu vi a cara dele quando ele escutou. Arregalou
os olhos e disse: "Vamos gravar". Era a última gravadora. Já linha
percorrido todas. Puxa vida! Tava aquele inferno de nordestino cercando
a CBS. O disco do Fagner estava indo muito bem. Era o disco de estréia
dele, 30.000 discos naquela época era um escândalo. Só quem vendia era
Roberto Carlos. Aí os nordestinos começaram a vender e eles ficaram de
olho. Se esse cara vende, vamos ver se esse tal de pau-de-arara... O
cara deu essa brecha, botou meu disco aí, foi gravado em novembro, saiu
em janeiro e fevereiro alucinadamente. As rádios descobriram Avôhai em
78 e Avôhai concorria com Vila do Sossego. Tenho documentos da época.
Nem eu sabia corno controlar isso. Sem saber o que era direito autoral,
editora, etc., não sabia nada direito. Perdi muito dinheiro naquele
momento, porém essas músicas me dão aIegria e prazer até hoje.
É muito difícil você manter o talento num país como o Brasil, não por
falta de condições, pois hoje a tecnologia aproxima mais. E pela
selvageria da mídia. É implacável, a menos que você queira fazer
aventuras, não se importando em fazer jogadas com os cartolas das grava
doras. Eu queria fazer dinheiro, ficar famoso, e não me importar muito
com críticos. Meu trabalho se encaixa quando estão acontecendo os
discos, as músicas. Sou um cara solicitado para aparecer nos programas
dominicais de grande audiência, assim como dezenas de artistas. Contudo
a manutenção de um artista no Brasil, você tem que ter muita disposição.
Num país grande como esse, você tem que gostar de viajar e ter paciência
de ir de Roraima a Porto Alegre de norte a sul, de leste a oeste toda
hora, e é assim que você mantém um trabalho. Você tem que estar sempre
ligando as pessoas à você, ao seu trabalho. Há sempre uma avaliação da
gravadora, de produtores de programas de auditório, enfim você tem que
corresponder a essa expectativa. O cara que está começando não está
preparado para essas coisas, tem que apanhar um pouco, se você quer
prolongar sua carreira, você tem que estar muito atento. No futuro,
poucas pessoas vão fazer 10, 20, 30 anos de carreira. Tudo vai ser muito
rápido. Vão aparecer artistas que venderão milhões de discos e
desaparecerão rapidamente. E isso vai ser uma coisa normal. No final dos
anos 60, as pessoas eram muito amigas e tinha-se mais persistência. Os
valores humanos eram tidos mais em conta. Vivia-se em comunidades,
trocavam-se idéias. Você chegava sem medo para as pessoas. Falo com
muito carinho dessa época. Eu aprendi muitas coisas. Tudo naquela época
eram acontecimentos políticos: a música, as artes, o comportamento, a
chegada da era de Aquário, a revolução sexual, o Oriente no Ocidente.
Muita coisa foi plantada nessa época, e tudo muito natural, muito ligado
à terra. Já morava no Rio, mas também vivia períodos no Nordeste. A
manutenção dos sonhos dos hippies era uma coisa de irmandade: dividia-se
a comida, o sexo, etc... Hoje, final de milênio, parece final dos tempos
mesmo, com clones, cyborgs, andróides, etc...
Sou de uma geração privilegiada, madura de vivências múltiplas. Vou
viver a passagem do milênio. Sou fascinado por avanço, acho isso tudo
muito inspirador: imaginar espaços, outros mundos, outras criaturas, a
amplidão. Isso tudo me inspira muito. Mando sempre mensagens espirituais
através das mídias, como disco, CD, vídeo, etc... E um modo de me
comunicar com as pessoas. Acho que todas as artes se interrelacionam.
Várias músicas que fiz saíram depois de ver alguns quadros de Salvador
Dalí. É alucinante: quadros enormes, criaturas esquisitas, etc. Fico
sempre ligado na sensibilidade e procuro passar isso para as pessoas.
Cada pessoa é uma antena. Você mostra uma coisa e a pessoa capta.
O meu livro Carne de Pescoço é de 1982. Reuni vários escritos feitos em
quartos de hotéis pelo Brasil afora, numa solidão danada. Sentia uma
compulsão incrível, então não parava de escrever. E uma espécie de
música total. Vários parceiros (Fagner, Jorge Mautner, Robertinho do
Recife e eu mesmo) apareceram através dos versos desse livro. O livro
não se encontra nas livrarias. Foi parte do acerto de renovação de
contrato com a CBS.
Todo dia acordo cedo, leio, ouço música, toco. A cabeça está fresquinha.
E bom para pensar, pensar, pensar. Tudo que imagino chega mais fácil
numa rede. Sou extremamente caseiro. Tenho uma coleção de fitas de video
alucinante. Passo horas vendo cinema. Bastante coisa de ficção
científica, filmes B, gosto de me divertir vendo cinema. Adoro viajar,
tenho uma equipe que já trabalha comigo há bastante tempo. Gero emprego
para muita gente. Tenho um gravadorzinho que vive ao meu lado. Quando
acordo no meio da noite, às vezes tenho umas idéias de música, umas
frases. Pulo da cama, pego o violão e gravo. Um, dois dias, uma semana
depois, volto a reouvir. Fico matutando na cabeça. Não deixo passar não,
senão a gente esquece. Temos que valorizar esse momento. Se deixamos
passar, vamos pensando em outras coisas. Todos os meus livros são
pensamentos musicais.
Eu procuro muito a energia do povo. Aquele monte de gente olhando pra
você no palco, você passa a ser o centro de atenção. Você está
canalizando um vetor de uma série de intenções e pensamentos que são
dirigidos pra você. Procuro trabalhar muito com isso. Não me considero
entendedor de nada não, mas sinto as energias das pessoas. Às vezes
pessoas atiram latas no palco, é uma barra. Você tem que aprender a
lidar com essas diferenças louquíssimas. Há um grande prazer nisso tudo.
Sem prazer não daria pra fazer nada mais.
Já passei por tanto inferno com as drogas. Consegui sair disso sem
tratamento, sem psicanalista, numa espécie de autociência. A Roberta
Ramalho, minha esposa, me ajudou muito nessa época. Eu ficava muito
nervoso, mas procurei sair. Simplesmente você tem que achar a mesma
porta por onde entrou e sair, já que você esquece onde ela está. Depois
de tanto inferno que vivi, isso me afastou muito da avaliação das
gravadoras. Passei a ser muito repudiado, tido como muito louco,
intoxicado, difícil de trabalhar. Precisei apagar essa imagem também, e
consegui. Saí disso tudo. E muito difícil, eu entrei e fui fundo demais
nas coisas, mas tenho uma saúde muito forte. Esse momento que estou
vivendo é o que me interessa. Essa felicidade familiar que estou vivendo
com Roberta e todos os meus filhos. Você tem que saber o que é bom e o
que é ruim para você. Tudo que aconteceu foi a forma, a estrada de
chegar até aqui. Batalhei muito e eu estava perdendo o controle do meu
trabalho em função da interferência da minha vida particular. Tudo é
necessário no momento dessa vivência.
Quando convidei Zé do Caixão para posar para capa do meu disco A Peleja
do Diabo com o Dono do Céu (1979), a gravadora achou um absurdo. É uma
capa performática: estão lá Helio Oiticica, Xuxa Lopes e Zé do Caixão.
Pensei: se a capa está causando tanta indignação, é curiosa e original.
Foi uma confusão danada.
Desde cedo trabalho com Geraldo Azevedo. Elba Ramalho e eu fazíamos
teatro juntos em João Pessoa. Tomávamos cachaça e ficávamos juntos de
madrugada na praça conversando sobre tudo: música, arte, sobre o sul
maravilha. Tomávamos cachaça e tocávamos violão. Várias vezes fazíamos
isso.
A Vila do Sossego era uma casa de praia. Depois da temporada com Alceu
no Rio voltei para recuperar as forças no Nordeste, e uma tia minha
tinha essa casa. Aí eu coloquei uma placa. Vila do Sossego. Em 73 essa
casa tornou-se um ponto de encontro de artistas de João Pessoa que se
reuniam para fumar um baseado, tomar umas, conversar sobre arte e outros
rumos. Provocou um grande tititi na cidade. O que aparece na música são
citações desses encontros. Tudo era muito louco e muito novo nas nossas
vidas. A gente era chamado de viado e outros termos da época. Era muito
difícil, estávamos em plena ditadura. Tomamos muitas porradas e hoje
triunfamos.
Nós, Raul Seixas e eu, dentro do contexto de música brasileira,
desenvolvemos uma linha de música muito próxima. Só que Raul é o
antecessor. Quando ele começou, me envolvi muito com o trabalho dele,
que muito me inspirou. A mistura de Raul e Bob Dylan era muito
instigante pra mim. O trabalho de Raul tinha aquela coisa de Nordeste e
também de mexer com a filosofia popular que existe no Brasil. Depois que
ele morreu, eu fiquei mais ou menos órfão. Esta linha de que estou
falando é dentro da avaliação que se faz de autores de música
brasileira. Pouquíssimas pessoas trabalham com essas letras malucas,
estranhas, cheias de símbolos e que atraem certo tipo de gente. Ele
deixou milhares de fãs. Depois que ele morreu, essas pessoas me procuram
muito, vão aos meus shows e ao mesmo tempo comecei a cantar algumas
músicas de Raul. Estou corn um plano de fazer um disco corn músicas
dele. Kika Seixas, a viúva de Raul, me procurou recentemente e me passou
alguns originais para musicar. Quero fazer esse disco na virada do
milênio. Esse projeto vai ser quente. Minhas coisas têm uma programação.
Tenho fascinação por Bob Dylan desde a Paraíba. Eu era um cara muito
curioso. Na rádio Borborema de João Pessoa tinha um acervo de discos que
nunca tocava na programação, o discotecário era meu amigo e deixava que
eu mexesse em tudo. Achava coisas que pensava que nunca ouviria em minha
vida. Eu gravava isso tudo em fita e ficava cru casa horas e horas
ouvindo. Tive acesso a Dylan através desse processo. Letras longas como
as de Dylan me fascinavam. Um puta poeta! Eu não sabia inglês direito na
época, então eu pedia ajuda a professores. Eles traduziam para mim e eu
ficava horas e escutando. Um grande mensageiro! Um grande profeta! Aí
pensava: você pode fazer uma música com uma estória longa sem se
preocupar com o tempo, que vão tocar na rádio, fora dos padrões. Me
iluminou muito. Tudo que a gente ouve, a gente absorve. Você vai
misturando com o seu potencial próprio, seu talento. Agente tem que
perceber essas passagens de informações. Somar isso. Se você não acerta
logo, paciência, acerta na próxima.
Estou com planos de gravar um disco novo. Ele está prontinho na minha
cabeça. Devo começar a gravar depois da Copa, em julho. O nome do disco
será Eu Sou Todos Nós, que é uma mensagem de uma das músicas do disco:
"Eu não sou eu / eu sou você / eu sou todos nós / hoje eu mais nada faço
/ eu somente falo pela tua voz / hoje durante um segundo fiquei a sós /
S.O.S. com o mundo / hoje encontrei no fundo do poço meu rosto / e agora
posso saber que eu sou eu / eu sou você / eu sou todos nós". Depois do
disco Antologia. vou apresentar um disco com pacoles de músicas
inéditas. Vou fazer este disco. O segundo sera Nação Nordestina, um CD
duplo. Tenho que fazer este apanhado para gerações futuras. Vou fazer 20
gravações dos maiores artistas do Nordeste de todos os tempos: Jackson
do Pandeiro, Luiz Gonzaga João do Valle, Dominguinhos, Anastácia, e mais
um monte de gente de quem nunca se ouviu falar. Vou fazer regravações
ramalheadas, ou seja, uma leitura desse universo ao meu modo, ao meu
estilo. Tenho que fazer isso. A capa, será alguma coisa tipo colagem,
Sargent Pepper’s dos Beatles com todo mundo. Um disco que seja viável
comercialmente e um documento forte. Um projeto romântico e ideológico.
O seguinte será o do Raul para a entrada no novo milênio.
Depoimento dado a Jorge Salomão no dia 17 de fevereiro de1998 na Jerimum
Produções, Rio de Janeiro.
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NOSSA VITRINE |
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